Linha 404 Cascatinha/Interpass

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Eu tenho crises de pânico e peço, por um momento, que todas as mães se reconheçam.

Como todas as crianças, eu tive um tio porteiro que, no fundo, queria ser eletricista. Ele dava seu jeito, como dizia, em todos os problemas elétricos da casa – que eram muitos, já que ele mesmo havia feito a fiação, aquelas ligações coloridas, todas sempre muito emboladas, como se umas não quisessem que as outras partissem, mudassem de vida. Fato é que a fiação vivia pegando fogo, as lâmpadas não davam serenamente o último suspiro da morte e apagavam o brilho; não: elas explodiam, os interruptores de luz derretiam. Um dia, o fogo chegou ao chuveiro. E adivinha quem estava tomando banho?

Eu tenho esses segundos cravados como coroas-de-cristo dentro de mim. Eu devia ter lá minha parcela de culpa, devia estar há muito tempo debaixo do chuveiro, mas jamais imaginaria um banho terminar em tragédia familiar. Pelo menos, não até pegar fogo no interruptor e o fogo subir rabo acima aqueles fios coloridos e emaranhados e expostos parede afora. Não morri, afinal, eu não era qualquer criança, eu era criança envolta nas preces de dona Maria Magdalena, mas ficou o medo do susto, o pânico que vem do medo, o medo que vem da perda, a perda que vem da morte. Aquele dia eu descobri o que é morrer. Pensando bem, não tinha mesmo por que o meu tio sair do ramo de vigilância para ir por aí, incendiando sobrinhas.

Quando você sabe o que é morrer, você não anda tranquilo por aí, relaxado ou distraído. Você anda atento, sangue nos olhos. Eu sou distraidíssima, mestra em esquecer de pôr sapato e sair de chinelos, campeã mundial de jogar controle remoto à distância quando arrumo a cama, mas ao menor sinal de perigo, eu ergo a cabeça como um cão de caça. Ainda mais depois dos filhos, ainda mais depois de revisar todas essas notícias tristes que, infelizmente, temos por missão comunicar aqui, no A Voz da Serra. Morrer é triste. E morrer no susto é sempre morrer cedo demais.

Estendi o pânico do susto para o pânico do trânsito, pois o trânsito é o maior fazedor de sustos do universo, ou pelo menos aqui no Brasil, onde moda de homem-bomba ainda não bombou. Pelo pânico adquirido, não dirijo. Me reservo o papel de ser o segundo par de olhos do motorista, atenta a cada bundinha de vagalume que pisca lá fora. Sofri, que me lembre, três acidentes de trânsito na vida: com Wallas, quando quase engoli a colher com que estava comendo cuscuz; quando um ônibus bateu na curva do Curral do Sol – modéstia parte, eu sempre soube que isso um dia ia acabar acontecendo comigo –; e a mais antiga: o caso do atropelamento da Grotaferrata violeta.

Resumindo, porque o espaço de caracteres vai acabar, eu estudava no Dermeval com uma peste chamada Debson. Desculpe a falta de sutileza, é difícil ser sutil quando anos após ano você apanha de um moleque pelo menos dez centímetros menor que você. Um belo dia, ele se deu conta de que me bater na hora da saída era muito mais divertido, já que eu perderia o ônibus e, como os horários eram poucos, minha carteirinha de passe-livre perderia a validade. O motorista moreno de olhos verdes não me deixaria entrar e eu ficaria vagando desesperada até saber o que fazer, ou seja, muito mais divertido.

E ele foi cumprindo o script dele na minha vida, ele batendo e eu, apanhando, até que, um dia, eu resolvi correr, estilo Forrest Gump. Minha mãe não tinha vindo de Jaguarembé pra ver filha abaixando cabeça desse jeito. Mas Debson me alcançou, me jogou no chão e arrancou das minhas costas a mochila violeta cara pra caramba que mamãe estranhamente havia me dado, numa época de inflação violenta muito parecida com a que vivemos hoje, inclusive. De repente, antes que pudéssemos perceber, passou um carro correndo, arrastando minha mochila.

Podia ser eu. Sim, podia ser eu, se fosse o trânsito de hoje, possivelmente seria eu nas rodas daquele carro. Eu mal havia acabado de levantar do tombo. De repente, os fios todos pegavam fogo novamente em cima da minha cabeça. Peguei o que restou da mochila e consegui entrar no ônibus, pela primeira vez vendo aquele par de olhos verdes assustados. Sentei no banco alto maldizendo os horários do Cascatinha. Pra que tanto São Geraldo e tão pouco Cascatinha? Pra que apanhar tanto e levar tanto susto?

Enfim, tudo isso pra dizer que o trânsito é um susto constante. Um emaranhado de fios coloridos, embolados, sempre nervosos pegando fogo esperando que o outro não parta, não mude de vida, não saia na frente. Não dá pra confiar num mundo onde as pessoas já não sorriem e atropelam-se, umas às outras, seja no trânsito, seja com serviços mal feitos, a socos e pontapés ou manuseando celulares, distraídos. Quando foi que paramos de perceber a cor dos olhos uns dos outros?

Eu tenho pânico de trânsito porque não confio mais em bom senso. Está escasso. (Aliás, confiar, confiar mesmo, só nas preces de vovó Magdalena).

A título de informação, Debson nunca mais me bateu. Virou até músico da Euterpe.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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