Colunas
Eles não usavam WhatsApp
O que você chamaria de memória? Uma lembrança, uma situação familiar, uma presença frequente de algo ou alguém, tão perfeitamente conservada quanto o quadro da Santa Ceia nas paredes de todas as avós? Que espécie de força universal guarda esta e apaga aquela memória, a bem do cérebro, a bem da sanidade mental?
De uma hora para outra, passamos a delegar nossa memória aos dispositivos que entopem as prateleiras com a soberana intenção de nos atrofiar de toda forma, mas travestidos de modernidade. Claro, não se usa essa palavra na caixa nem no folder da propaganda. O atrofiado é feio e ninguém quer ser feio. A palavra de ordem é conexão. Só que, mesmo aparentemente conectados, a realidade única e insofismável é que, no fim da noite, comemos e dormimos sós. Ainda assim, sorrimos para a próxima selfie.
Tenho lembranças de pipas coloridas e carrinhos de rolimã. Figurinhas de álbuns, tazos, jogo do mico, de uma época em que olhávamos uns para os outros — e não através de telas. Até a Copa do Mundo parecia mais bonita na TV da minha memória. Agora tudo é feio e frio, tudo brilha por fora, mas tem muita corrupção e mágoa envolvida. Todos os acabamentos são de fino trato, mas por baixo da casca, no miolo, somos um monte de gente que come e dorme sozinha, conectada a uma aldeia global que não se olha nos olhos. Que apenas se curte. Que não se envolve.
Ainda ontem, conversando com Tati, que conheci na época de escola, analisei nosso upgrade de conversações: começamos com os famosos bilhetinhos que trocávamos em sala de aula, geralmente debaixo do nariz do professor (uma aventura), e agora, beirando os 30, estávamos ali, encantadas com a modernidade dos áudios do WhatsApp. E pensar que o primeiro emprego que arrumei na vida foi por causa de uma conta de telefone, absurda, por motivos de: Tati passava as férias em Niterói, mas eu não passava um dia sequer sem falar com ela. Eram horas e horas de telefone, então, mamãe me fez pagar.
Agora, duas adultas engatinhando no teclado Samsung. Tão contemporâneas da tecnologia, e ao mesmo tempo tão alheias a ela. Na mesma cidade, bairros pouco distantes, mas há meses não a vejo, nem por acaso, esperando na fila do pão. De repente me veio uma vontade desesperada de beber o Nescau de escaldar a goela que ela faz. De repente lembrei números de telefone. De repente Olaria, de repente oitava série do primário, de repente estávamos novamente separando as delicados azuis, que eu não gosto. De repente, não mais que de repente.
Minha memória estava ali, afinal. Eu havia delegado aos dispositivos — celular, tablet, computador — a missão de guardá-las, de arquivar coisas que não quero ter na cabeça all the time. Mas num passe de mágica, descobri tudo ali: Nescau, pipa no céu, bilhetes debaixo do nariz do professor.
Uma memória intacta, guardada num abraço atrofiado.
Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.
Deixe o seu comentário