A Voz dos Leitores — 26/06/2015

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Ponto e contraponto

Juro que abri as páginas do AVS de hoje seduzido pelo título do artigo “Dez razões para a redução da maioridade penal”, escrito pelo psicólogo Khristian Drummond. Pensava que leria uma dezena de motivos objetivos, práticos e demonstráveis cientificamente, ainda que no campo das ciências humanas. Ledo e triste engano. As cinco primeiras “razões” do articulista são, na verdade, descrições sumárias de tragédias criminais brasileiras que envolveram menores de idade. Cita o caso de Liana Friedenbach, vitimada por Champinha quando ambos eram menores de idade, enquanto o próprio pai da menina — lúcida e equilibradamente — afirma-se “radicalmente contrário a reduzir a maioridade penal” (Estadão, 24.abr.15). Cita ainda outros casos, mais ou menos midiáticos, recorrendo à velha estratégica dos punitivistas de plantão: utilizar o clamor popular criado em torno de fatos graves para justificar o recrudescimento das leis criminais. Estudiosos chamam isso de “legislação penal de emergência”. É o mesmo que acontece quando, diante do assassinato de um médico por facadas, propõe-se a criminalização do porte de arma branca. Ou quando, após os sequestros de Roberto Medina e Abílio Diniz, acelera-se a tramitação da proposta que desembocaria na Lei nº 8.072/90 (lei de crimes hediondos), hoje tão questionada pelos Tribunais brasileiros e por doutrinadores (p.ex: HC 82.959, STF). Pela quantidade expressiva de direitos que restringe, qualquer lei penal deve se submeter a padrões de avaliação rigorosos, afastando-se tanto quanto possível de critérios que remetam a afeto, ódio ou vingança. Foi essa capacidade de distinção que viabilizou a construção do Estado Democrático de Direito no período pós-ditadura, a superação da Inquisição e da Idade Média. O argumento 6 do articulista faria Foucault ruborizar de vergonha, não estivesse tão descontextualizado. A pena não tem efeito dissuasivo ou exemplar. Nenhum criminoso deixar de praticar delitos porque se dá conta da gravidade da pena abstratamente cominada. Nem o articulista, psicólogo por formação, acredita nisso. Assim pensavam os nazistas e todos sabemos bem o fim dessa história (cf. Marxen Klaus, Der Kampf gegen das liberale Strafrecht, p. 133). Eu não deveria debater com a informação de que o Brasil é o país da impunidade. Se o faço, é com muita brevidade e por respeito a este jornal, verdadeiro entusiasta do contraditório e da democracia da informação. Olhe, Dr. Drummond, para as cadeias brasileiras! Olhe para as nossas unidades de internação de menores! Olhe para o crescimento expressivo de nossos níveis de encarceramento! Cadê a impunidade? A “razão” número 7 eu não entendi: desconheço de onde saíram aqueles números e como 1 vítima por dia pode conduzir à “estatística” de 260 pessoas por ano. A “razão” número 8 não é propriamente um argumento, mas mera evocação de uma frase atribuída ao mestre Rui. Uma frase óbvia (“vamos educar a criança para não termos que punir o adulto”) e sem indicação bibliográfica precisa (há quem diga que seu autor foi Pitágoras). Além disso, a associação que o articulista faz entre melhores condições de vida e diminuição de delitos foi espancada pela criminologia há pelo menos 100 anos. Não há relação alguma entre pobreza e “criminalidade”, senão que os pobres são mais vulneráveis aos processos de criminalização do que os ricos. O pobre não delinque porque é pobre. O delito praticado pelo pobre, por seus baixos níveis de sofisticação, são mais facilmente detectáveis e punidos, daí porque nossas cadeias estão cheias de... pobres. As “razões” 9 e 10 são uma espécie de consultoria jurídica (oferecida por um psicólogo) e querem fazer o leitor acreditar que a “lei penal no Brasil é frouxa”. Será que ele está olhando para o mesmo Brasil que eu? É o Brasil da lei de crimes hediondos (restrição à progressão de regime e à liberdade provisória), lei do tráfico de drogas (pena mínima de 5 anos para traficante, qualquer que seja a quantidade de material entorpecente apreendida), leis dos crimes de trânsito (detenção de até quatro anos para um homicídio praticado sem intenção de matar) e do próprio Código Penal (remendado dezenas de vezes desde 1940, sempre em prejuízo do acusado)? Imaginem os níveis de superlotação das cadeias brasileiras se não existissem os “benefícios” citados pelo articulista, que geralmente favorecem autores de crimes leves e de baixíssima repercussão social.

Para nosso deleite e alívio, a mesma edição do AVS trouxe um artigo primoroso, sensato e brilhante da advogada Célia Campos. Este sim fruto de reflexão científica, distanciamento e clareza política. Obrigado por nos oferecer o ponto e o contraponto.

Rafael Borges

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