Você acha que a maioria das mulheres brasileiras prefere cesariana ou parto normal? Você sabe qual a relação entre cesarianas desnecessárias e o aumento dos problemas de saúde materna e neonatal? E sabe de que forma o uso das falsas justificativas que os médicos têm utilizado para induzir uma cesariana desnecessária têm contribuído para a perda da autonomia feminina?
Vamos falar sobre isso com a ajuda de um artigo muito importante que foi publicado em 2013 e que tem o título de “Reflexões sobre o excesso de cesarianas no Brasil e a autonomia das mulheres”, escrito por pesquisadores da Universidade de São Paulo. É um artigo muito interessante, que menciona, inclusive, algo extremamente relevante: a importância do que temos feito na internet pela recuperação do direito de trazer nossos filhos ao mundo com respeito e de ser respeitada nesse momento.
O artigo fala sobre como o parto se tornou um evento quase exclusivamente medicalizado, ou seja, dominado pelo saber médico, e que isso não é um evento isolado exclusivo da obstetrícia. Os sofrimentos e as dores humanas deixaram de ser vivências humanas e passaram a ser vivências médicas. Antes, quando sofríamos, esse sofrimento era vivido e administrado no interior das nossas famílias, nos nossos grupos de amigos, em nosso círculo pessoal. Hoje, não. São administrados sob um prisma médico, sob o ponto de vista do “como posso deixar de sofrer o mais rápido possível”, ainda que artificialmente. Nossas famílias não são mais mobilizadas para lidar com nossos sofrimentos, nem nossos amigos, e estamos nos distanciando como humanos uns dos outros. E o parto segue essa mesma tendência...
É isso o que os autores querem dizer quando afirmam que “a medicalização transforma culturalmente as populações, com um declínio na capacidade de enfrentamento autônomo das dores e adoecimentos”. O problema, um dos grandes problemas, é que essa medicalização excessiva contribui para que as mulheres percam suas capacidades de lidar com o fenômeno do parto...
É por isso que, para muitas mulheres, se tornou inaceitável não saber o dia que o filho vai nascer ou conhecer a intensidade da dor do parto. Hoje, queremos ter controle sobre tudo. E que riqueza de vida podemos ter se tentamos controlar todas as variáveis? Se não nos permitimos surpreender pela beleza da vida?
Sabe aquele papo de que “cesáreas salvam vidas”? Sim, isso é uma grande verdade, cesáreas salvam vidas mesmo. Sempre? Não. Em determinadas situações, a cesárea deixa de salvar vidas e passa a representar risco para a vida. Parece estranho, mas não é. Em nosso país, tem havido redução progressiva da mortalidade materna e neonatal. Mas quando analisamos a relação entre o aumento de cesarianas e o aumento da prematuridade, ou entre o aumento de cesarianas e o aumento do número de bebês nascidos com baixo peso, torna-se fácil entender que, ao contrário do que o senso comum acredita, a cesariana tem representado mais riscos que benefícios. Porque ela vem sendo utilizada não como um procedimento de necessidade, mas de conveniência.
Então, estamos colocando a saúde dos bebês e das mães em risco por conveniência? Sim, estamos. O artigo ainda cita um grande autor (Ivan Illich) para afirmar que, sim, as instituições de saúde estão produzindo problemas de saúde. Afinal de contas, se prematuridade do bebê é um problema sério de saúde, e ela tem sido causada principalmente pelas cesarianas eletivas, então as instituições de saúde, na figura da equipe médica, são as responsáveis diretas por isso. No entanto, em uma inversão muito cruel e perversa, a prematuridade, o baixo peso ao nascer e as outras más consequências do nascimento induzido prematuramente não têm sido associadas, pelo senso comum, à equipe médica, mas, sim, a uma falsa “incapacidade da mulher de dar à luz”. Não é cruel isso? É!
A mulher não está incapacitada para dar à luz. Mas ela está se tornando incapaz de tomar, sozinha, suas próprias decisões justamente porque depositou sobre a medicina toda a responsabilidade pelo bom funcionamento do seu corpo. E, paradoxalmente, é justamente essa medicina que tem promovido resultados indesejáveis. Por isso, é tão importante que as mulheres retomem para si o poder de decisão sobre seu corpo, seus partos e sobre a vida de seus filhos. Gravidez não é doença, parto não é problema.
O artigo faz, ainda, três perguntas importantes, das quais destaco uma. As mulheres brasileiras preferem a cesariana ou parto normal? Quando a gente vê uma taxa nacional de cesariana superior a 52%, temos o ímpeto de responder: “As brasileiras preferem a cesariana!” Não. De acordo com o artigo, estudos realizados sobre preferência da via de parto pelas mulheres no Brasil mostram que a maioria prefere o parto normal. Uma revisão sistemática, envolvendo 38 outros estudos, indicou uma taxa de preferência pela cesariana de apenas 15,6%, valor que aumenta entre mulheres com cesariana anterior e entre as que moram em países de renda média. E por que a maioria prefere o parto normal? Dois dos principais motivos são: a recuperação mais rápida e a muito maior satisfação com a experiência de nascimento de seus filhos.
Então, caras amigas, saibam: se há uma autoridade máxima em questões que envolvem seu corpo e seus filhos, é você. Segure em suas próprias mãos o domínio sobre seu próprio corpo. Como? Primeiro, se informando, sabendo tudo o que for possível, sobre cesariana, parto normal, direito de escolha, reais indicações de cesárea, falsas indicações, procedimentos do pré-parto, intraparto e pós-parto. Segundo, não se colocando em posição de passividade perante o profissional de saúde. Ele é um profissional como qualquer outro, formou-se como outro graduado qualquer. E o fato de ser de uma determinada área não confere a ele poderes de divindade.
Mulheres trazem filhos ao mundo. Profissionais apenas as auxiliam. Assim, a peça chave, a verdadeira protagonista desta história é a mulher. Desculpem-nos os patriarcalistas, mas essa é a verdade. Se a você foram dados argumentos amedrontadores, peça segundas, terceiras, enésimas opiniões.
Pense em você e em seu filho. Reitero, a grande maioria das mulheres prefere um parto normal. Entre as que dizem preferir uma cesárea, estão muitas mulheres que foram amedrontadas e diminuídas por uma cultura que reforça o trinômio sangue-dor-morte e a incapacidade feminina de lidar com sua natureza. Mulheres podem, mulheres conseguem, mulheres querem. E se, ainda assim, a grande maioria delas tem acabado na cesárea, algo de muito estranho está acontecendo. Algo estranho, perverso e cruel. Não se esqueça disso.
Ligia Moreiras Sena é mãe, mestre e doutora em ciências. Faz seu segundo doutorado pesquisando a qualidade da assistência ao parto no Brasil. É autora do blog 'Cientista que Virou Mãe' e do livro 'Educar sem violência - Criando filhos sem palmadas'
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