Colunas
Uma passagem para Pasárgada
Sempre imaginei que a qualquer momento da vida, se desse tudo errado pra mim, eu poderia enfiar minha viola e minha Oral B no saco e começar tudo de novo, num novo lugar,porque foi exatamente o que aconteceu com os exemplos que eu tinha mais próximos. Minha mãe um dia saiu de Itaocara e começou outra vida em Friburgo. Já meu pai trocou a vida daqui por uma em Moju, lá no Pará, onde ele costumava dizer que os pernilongos nos recebiam com espingardas nas mãos. E, anos mais tarde, foi a vez da segunda esposa dele largar o que conhecia em Moju para virar uma friburguense desde criancinha. Enfim, me acostumei a enxergar as mudanças drásticas como etapas naturais da vida.
Mas não são. Chega o dia em que a gente entende que é preciso ter raiz em algum lugar, criar algum vínculo. Precisa morar numa casa tanto tempo a ponto de ter que tapar as manchas da parede da cozinha. Ou acompanhar o crescimento das crianças fazendo marcas no batente da porta, caramba, isso é uma das coisas mais geniais, é definitivamente a prova de que uma família criou raiz naquele lugar, naquelas paredes. Com um monte de Oral B morando juntas numa canequinha no banheiro.
Então a gente passa os dias a especular a próxima viagem. Traça roteiros. Capricha um pouco mais no sotaque. Porque as viagens de férias representam essa vida nova, nem que seja por poucas semanas. Os olhos veem paisagens pela primeira vez, com o guia turístico na mão e uma nova pessoa na cabeça. Tudo é novo. Pra você, não para o cara entediado que está dirigindo o táxi. Pra ele, não há mais tanta beleza na paisagem de todos os dias.
Engraçado que um dos meus sonhos de consumo era ter uma casa na praia, achava simplesmente o máximo poder andar no máximo vinte minutos e, olha aí, tem um siri beliscando o meu pé. Ter casa na praia era ser a nata da nata, ser alguém além dos outros pobres mortais que, no máximo, curtiam o fim de semana no Cão Sentado. Até que um dia conheci uma garota que morava no Flamengo. Passava por praias todos os dias para chegar à Faculdade. E ela dizia "que delícia os ares da serra, como seria bom respirar o ar puro das montanhas!”. E ela sofria mesmo, passava o ano todo sonhando com essa prisão de folhas frescas e ventos uivantes. As férias dela eram a minha Alcatraz.
No fundo, viajar é deixar de ser. É trocar um pouco de corpo, trocar de cara e até de língua. Começar vida nova, mas só um pouquinho. Estranhar o colchão novo sabendo que o velho continua esperando fiel, irredutível. Suas raízes permanecem, mas a mente tem a chance de voar. De respirar um pouco de ar diferente. De absorver. E pagar o tédio do taxista com um sorriso sincero.
Há algum tempo venho trocando os móveis de lugar, que é o melhor artifício para quem gosta de respirar novos ares. Me imagino arrumando as malas e viajando para algum lugar, comendo uma comida de gosto esquisito e ouvindo meu marido reclamar do colchão, enquanto o velho nos espera em casa. Fiel. Irredutível. Nossas escovas de dentenas canequinhas e as marcas das crianças nos batentes da porta. Eu espero as férias e sonho com as viagens. Viagens longas, pelo mundo todo. Sigo esperando ser a minha própria repórter no meu próximo Globo Repórter. Sigo esperando ser amiga do rei em algum lugar. Só não sei se esses novos ares virão. Quando virão. Se é que virão.
Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.
Deixe o seu comentário