Sobre primaveras e invernos

sábado, 19 de julho de 2014

— Há algo de etéreo na primavera. O inverno, não. O inverno muda as pessoas, os sentimentos. O vapor que sai da boca tem muita seriedade. O frio é concreto. É palpável. No inverno, as cores são recobertas com uma espécie de véu e... 

— Acho melhor irmos pra casa, você anda filosófica demais.

Engraçado que o "anda” me fez ter a impressão de que já andávamos juntas há meses, mas eu mal a conhecia. Éramos amigas de Rua Portugal: sem maiores intimidades além do Orkut e das aventuras das noites de sábado. Todo mundo riu na mesa, todo mundo concordava que eu andava filosófica demais, mas eu continuei séria. Pensando na vida, analisando coisas, pessoas. A amiga da Fanta tinha razão. Era melhor irmos pra casa. 

Fanta era o apelido da Fernanda, minha prima. Guilherme não falava Fernanda de jeito nenhum e nos acostumamos com o dialeto de bebês. Éramos inseparáveis as duas, de verdade. Shows de rock, aniversários de parentes, teatros dos festivais de inverno e a gente lá, com as roupas pretas e cabelos esvoaçantes. A adolescência foi generosa. Nos divertimos o bastante.

Eu tinha umas primaveras a mais que ela. Hoje em dia não faz a menor diferença, mas eu com meus 20 anos e Fanta com uns 14, com certeza, dávamos um certo ar de conselheira e aprendiz. E eu assumia feliz o papel, gostava de parecer sábia e equilibrada, mas a verdade é que sempre fui uma bagunça por dentro. Tinha ideias e sentimentos espalhados por todos os cantos, sem ter tempo de guardar cada coisa em seu lugar. Por isso eu gostava dos invernos e toda sua sobriedade. Como se nos sobretudos e cachecóis estivesse o peso da experiência que eu precisava tanto, como se o frio realmente cobrisse com um véu todas as cores que me atraíam tanto, mas que, no final, eram só uma paisagem bonita e nada mais. Eu era, definitivamente, uma garota de inverno, cheia de névoa por dentro. Fanta era leve, tinha um sorriso puro. Quantos problemas resolvemos juntas, eu desesperada e ela serena, serena. Shows, aniversários, teatros de festivais. Fanta era uma versão tão diferente de mim. No fundo, a aprendiz era eu. Fanta, hoje, tem mais primaveras que eu. E eu tenho invernos demais.

Não há um show onde eu vá que eu não me lembre dela. Carrego horrores no lápis preto, no esmalte vermelho, e sigo, esvoaçante, mas não há como não lembrar das nossas farras juvenis, das nossas descobertas. Do quanto rimos juntas. Ela, primavera em flor; eu, toda inverno e tempo nublado. Julho, na minha cidade, é mês de pestanas que se fecham e se abrem lentamente. É mês de silêncios carregados de sentido, sem que seja preciso dizer uma só palavra. As pessoas de julho simplesmente se entendem: o frio faz parte de nós. Nos tempos de calor essas conexões se perdem.

Nesse dia, em que eu andava filosófica demais numa mesa de bar na Rua Portugal, a amiga da Fanta, a Fanta e eu tínhamos assistido a uma peça de teatro que me fez começar mesmo a pensar na vida. O problema é que eu não parei de pensar até hoje. Eu ajo, sim, saio do lugar, recomeço tudo de novo e de novo, mas, quase que todo o tempo, eu paro pra pensar. Pra juntar ideias e sentimentos e colocar tudo em seu lugar. E isso não é covardia. É que esse frio, esse julho, sei lá, introspectiva a gente. Como disse Drummond, é esse conhaque que bota a gente comovido como o diabo. Eu tenho pensado demais, filosofado demais. É a saudade de viver plenamente invernos e primaveras. Suar, além de pensar. A amiga da Fanta, que eu mal conhecia, tinha mesmo razão. É preciso saber, enfim, a hora certa de pedir a conta e voltar pra casa. 

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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