De olhos bem abertos

sábado, 12 de julho de 2014

Antigamente, eu pensava que não existia momento em que a vida fosse mais linda do que naqueles segundos que sucedem uma experiência de quase morte.  Escapar de uma batida de carro, de uma garrafada no bar, de uma apendicite. Era nisso que eu pensava enquanto a cadeirinha do Teleférico lentamente se movia morro acima, rumo ao novo emprego que eu tinha acabado de conseguir. Se eu chegasse inteirinha lá no topo eu pararia de fumar, de beber, de comer gorduras saturadas. Iria me exercitar mais e parar de ver tanta televisão. Era tanta promessa que já não cabia mais nas minhas orações apressadas. Pensando bem, quem lesse meus pensamentos naqueles dias teria a exata dimensão de que eu não subia rumo a um mísero emprego de vendedora de licores: eu subia rumo a uma nova vida, de novos valores e novos conceitos gastronômicos, quase uma Santiago de Compostela. Mas eu subia de olhos bem fechados e com um arsenal polpudo de promessas por um motivo tanto infantil quanto compreensível: eu morria de medo de altura e tudo o que eu queria era não me machucar.

Meus amigos, claro, tentavam me persuadir. É tão seguro, Blue. Engenheiros sérios projetaram isso aí. Não adiantava: o arrependimento de subir me batia no exato momento em que eu sentia o ferro gelado da cadeirinha debaixo das minhas coxas. E quando passava acima da igreja, então? Era um infarto na subida e mais dois na descida, quando acabava o expediente. E isso todos os sábados, domingos e feriados. Sextas-feiras santas, Jesus morrendo de novo e eu pensando só em mim, estatelada nas telhas daquela igreja. Logo eu, que enfrentava a vida de peito aberto e bolsos esperançosos. Que fiz primeira comunhão como manda o figurino. Logo eu.

Até que um dia uma garotinha loura de uns 10 anos, angelical como um coice de mula, apareceu na minha lojinha. Não vi de onde surgiu, com quem estava, não vi nada, só uma criança pentelha lambendo o vidro da porta — sim, a porta ainda estava fechada e eu estava limpando as garrafas de licor nas prateleiras quando vi uma enorme língua vermelha lambendo o vidro da porta. Depois bateu a porta. Depois bateu de novo a porta. E voltou a lamber. Então eu abri.

Confesso que entendia aquela pentelha. É que com tantos sabores e cores, ficava difícil não se deixar apaixonar pelas garrafas. Ela insistiu tanto, mas tanto, que eu acabei dando uma provinha de um licor de chocolate pra ela. Uma prova à toa, mal dava pra sentir o álcool. Eu mesma já tinha bebido litros daquelas bebidas e nunca tinha sentido nada além de remorso e vergonha. Pileque que era bom, só com as caipirinhas da tia Gina. Mas como eu sou uma pessoa com o mesmo nível de sorte da família Kennedy, os progenitores da pequena Santana, que até então sequer haviam dado as fuças, chegaram bem a tempo de ver a criança rodopiando na minha porta, cantando "olha, mamãe, estou bêbada, estou bêbada”.

Que dor de barriga. Que aflição. Que criança mala dos infernos. Era óbvio que eu ia pra cadeia. Óbvio, mundo, óbvio, Jesus, óbvio sua imbecil, como você pôde encachaçar uma criança com meio dedo de licor de chocolate? Definitivamente, aqueles 5 segundos de silêncio foram longos demais para alguém que não tinha nem coragem de abrir os olhos quando subia pela cadeirinha do teleférico. Eu cheguei a ouvir as sirenes dos carros de polícia. Mas, não: os pais caíram na risada e levaram embora a pequena alcoólatra, que a essa altura do campeonato eu tinha vontade de fazer lamber o vidro até gastar.

O teor alcoólico era mínimo, de qualquer forma não teria feito mal a ela. Eu que era muito desesperada, sempre. Acho que, no fundo, vivia esperando que a morte viesse. Que viessem as más notícias, os atropelos. As apendicites. E por que, afinal? Talvez o pior viesse, mas e daí? Ia viver antecipando sua chegada, pra mostrar pra todo mundo que eu não tinha medo nenhum de altura, o meu maior medo mesmo era de viver? De cair e de me machucar, fosse qual fosse a cadeira da vida em que eu estivesse sentada?

Aquela garotinha loura me fez, pela primeira vez, descer o teleférico de olhos abertos. E às gargalhadas. E que visão linda eu tinha perdido todos aqueles meses! À noite, as luzes da cidade se misturavam um pouco com as estrelas e eu nunca tinha me permitido assistir isso. A igreja era tão bonita vista de cima. Fazia valer todas as minhas promessas de uma vida melhor.

O teleférico reabriu há algumas semanas, talvez deixando pra trás mais uma das grandes cicatrizes que o ano de 2011 nos deixou. Não sei se tenho vontade de subir novamente, porque o meu saudosismo entranhado vai me fazer chorar ao ver o vidro lambido. Mas, caso resolva subir, irei feliz da vida, balançando as perninhas na cadeira gelada e aproveitando o que nos restou de paisagem. Apreciando o milagre que é a vida, antes, durante e depois dos momentos que sucedem as más notícias. Sem medo de altura. Ou de dor. E, claro, de olhos bem abertos.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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