Colunas
Um anel azul para Blue
"Eu vou contar pra minha filha como a Lua ficou feliz quando ela veio”. Ouvi isso durante uma conversa com Ramon. Sua filha, Flora, havia acabado de nascer e ele me contava que voltou pra casa de bicicleta, maravilhado, sorrindo frouxo e olhando para a Lua. Também eu, muitas vezes, observei a Lua, mas eu era a filha esperando pelo pai. Ocorreu aos deuses que colocar meu pai como caminhoneiro seria uma boa ideia. Apenas para o dono do caminhão, certamente, porque isso nos custou, a mim e a minha irmã, uma espécie de vazio incapaz de se preencher. Dias a fio sem notícia, sem os beijos de aniversário, assistindo nossa mãe dormindo sozinha, noite após noite, esperando que talvez, quem sabe, Deus ouvisse suas preces e o fizesse parar de viajar. Mas havia uma espécie de legenda em todas as fotos da família dizendo: Fernando não vai voltar.
O pior dessa época era quando ele telefonava e dizia que estava na estrada, vindo para Friburgo. Desse dia em diante, eu já não dormia. Apertava forte os olhos e contava milhões de carneirinhos à noite, mas os deuses julgaram pertinente que morássemos no alto de um morro, de onde era possível ouvir cada caminhão que passava na avenida. Onde eu morava mesmo, havia um velho caminhão que minha avó chamava de jubiraca — vai saber por que —, barulhento toda a vida. Ou seja, eu acompanhava com os olhos fechados cada caminhão na avenida. Na maioria das vezes, o barulho ia se dissipando, diminuindo, e eu sabia que o caminhoneiro seguiu viagem pra outro lugar. Mas havia noites em que o barulho dos motores virava a avenida, ia ficando cada vez mais forte e subia o morro. Aí eu levantava num salto e corria para a janela, afoita, já quase sem ar. Mas não era meu pai; era a jubiraca. Eu olhava para essa mesma Lua que sorriu para Flora e era sorrindo que ela me dizia: seu pai não vai voltar.
Minha mãe nunca me deu o privilégio de me revoltar. Convicta feito mula — falo assim porque ela não lerá esse jornal, porque se viva fosse e lesse isso, eu seria uma Ana Blue sem dentes na semana que vem —, afirmou durante todo o tempo que papai queria apenas uma vida melhor e por isso se sacrificava. E eu acreditei, claro. Guardei a tristeza no bolso, tirei as melhores notas. Li o quanto pude. Arranjei o mínimo possível de namorados. E seguia com os ouvidos grudados na avenida.
Um dia, o caminhão era ele. Chegou bem tarde, estava passando na TV um episódio de "Hilda Furacão”, que eu assistia escondida. Nunca pulei tão alto. Depois dos devidos abraços e mostras dos boletins, ganhei uma lanterna daquelas parecidas com laser; minha irmã, um urso de pelúcia branco do tamanho de um São Bernardo. Ele me chamou até a cozinha e me entregou uma caixa pequenininha, com umas rosinhas enfeitando a tampa. Era o presente para a mamãe: um lindo anel de ouro, com uma pedra azul em cima. E, tão rápido quanto veio, voltou para a estrada e eu passaria alguns anos sem vê-lo.
Guardei aquela noite como o meu ideal. Eu me casaria, teria filhos. Levantaria a qualquer hora que meu marido chegasse e lhe faria chocolatequente. Nossos filhos ganhariam presentes se tirassem notas boas. Só que aos deuses coube a decisão de que eu não seria nada assim. De primeira, me tiraram o materialismo — o misturar de progresso/recompensa, o que foi ótimo. Depois, cresci fazendo minha própria comida e com o hábito de escrever. Ao escrever, eu era muitas Anas — e nenhuma delas se dispunha a parar de escrever para ir ao fogão por outro se não por mim.
Até que conheci Alexandre. O vazio, que se mantivera quieto e quase inexistente todos aqueles anos, se manifestou. É preciso ter uma família, Ana. É preciso ter casa, regras, hora de escola, carteira assinada e um pouco mais de pragmatismo. Alexandre me fazia querer tudo aquilo. Me mostrava que era possível sair da negação. Deixar a criança pra trás. Olhar o futuro. Era preciso cuidar dos filhos. Eu já tinha o Guilherme e os deuses — sempre eles, seja lá quem sejam — julgaram oportuno que eu, meses antes de conhecê-lo, tivesse um outro filho a quem também dei o nome de Alexandre. Um ensinou o outro a andar. O outro ensinou o um a ser pai. E eu, claro, passei a olhar a Lua com outros olhos.
Começamos a namorar. Então, aconteceu de eu engravidar de novo, terceiro filho. Que aflição! Corre daqui, engorda de lá. E vai chorar gravidices em casa de Paloma — não contarei quem é Paloma agora, ela merece uma crônica só dela. E pede a Diego para fazer misto-quente. E suco de laranja. E, Diego, você é o marido da minha melhor amiga, vai lá comprar amendoins na padaria senão eu vou morrer. Eu ia ter o terceiro filho e, de quebra, daria um filho a Alexandre, mas ainda fazia dengo e chorava no canto por um amendoim.
Remontamos a casa dele e fomos morar juntos. E, de repente, deixei de ser filha para ser realmente mãe. Hoje, na outra cadeira da gangorra, lembro de conversas incríveis que tive com meu pai. E agradeço a atitude de mamãe de não me deixar alimentar a revolta ou a mágoa. Papai teve lá seus motivos e não me cabe julgá-los. Acho que a nenhum filho cabe. Flora, um dia, vai realmente saber que seu pai achou a Lua mais bonita quando ela nasceu. Valentina, filha de Diego e Paloma, vai saber que o pai dela cuidou dos irmãos dela, dos meus filhos, de mim... antes mesmo de vê-la em seus braços. Os filhos saberão o melhor de seus pais. Quanto a mim, senti e ainda sinto falta do meu pai, mas sei que ele está bem ali, pertinho. Já não me interessa mais os barulhos de caminhões. Uma linha Cordoeira x Belmonte é tudo o que nos separa hoje.
A vida me deu novos pais. Os principais, claro, são meu sogro e Alexandre. Antes de dormir, meu filho disse que fez um desenho para Alexandre e que "foi super fácil escrever o nome dele porque é igual o meu”. Me alivia saber que ele nunca vai precisar se preocupar com os motores no meio da noite, seja por ansiedade de ver o pai ou simples jubiraca.
No fim, numa caixinha, na estante do meu quarto, o anel com a pedra azul ficou comigo. Já chorei algumas vezes com ele, mas hoje é só lembrança de tempo bom. Do meu pai voltando pra casa, da minha mãe toda vaidosa, da minha irmã maravilhada com seu ursão do tamanho de um São Bernardo. De todos os pais maravilhosos que os deuses, merecidamente, puseram no meu caminho. Eu tive momentos de solidão e desespero, como todos têm. Os órfãos, os abandonados, os que estão sozinhos. Espero que para todas essas pessoas exista a mesma paz que sinto hoje, de saber que os tempos ruins passam — e que podemos aprender com eles.
Aquele anel de pedra azul é como um portal mágico pra mim. A maior conexão que tenho com a criança que fui. E nele, há uma legenda que talvez só eu seja capaz de ler: Ana, os tempos ruins não vão voltar.
Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
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