Olhos de Frida Kahlo

sábado, 23 de agosto de 2014

Quando dona Beatriz, 73 anos, morreu, não havia ninguém na porta do céu para recebê-la. Ocupado com os preparativos para acomodar as vítimas de mais um confronto em seu nome, Deus não notou sua chegada. Como se procurasse lugar para ficar, a senhorinha vagueou horas por aquele amontoado de nuvens. Chegou ao quarto de Deus e, na parede direita, havia uma estante abarrotada de livros de capas vermelhas e douradas. Em cima da escrivaninha, ao lado de um porta-retrato com um close bem bonito de Jesus, estava um desses livros. Curiosa, dona Beatriz começou a folhear as páginas.

Nele estava escrita a história de Magdalena Carmen Frieda Kahlo y Calderón — Frida Kahlo. A artista teve uma vida difícil. Ainda criança teve poliomielite, que lhe rendeu uma deformidade no pé direito. Aos 18 anos, num acidente entre um bonde e um trem, o parachoque de um dos veículos perfurou suas costas e atravessou-lhe a pélvis. Ficou entre a vida e a morte. E por ter permanecido muitos meses deitada para se recuperar, começou a pintar. Casou-se depois com um pintor — Diego Rivera —, que mesmo casado, teve um relacionamento com sua irmã. E com ela, seis filhos! Traída pelo marido e pela própria irmã! — dona Beatriz estava apavorada.

Então, ela teve uma grande ideia. E se pudesse fazer a vida de Frida Kahlo mais bonita? Que tristeza, que sofrimento, Deus devia ter vergonha de fazer essas coisas com as pessoas. A senhorinha pegou borracha e lápis na gaveta e danou a apagar as páginas. De cara, cortou logo a história da poliomielite. Criança tem que correr. Colocou mais cor e mais dinheiro na casa dos Kahlo. Gostou de ser Deus, mas notou que seus braços estavam sumindo. Pernas, barriga, tudo foi virando uma espécie de vapor, se dissipando no ar, até que, finalmente, dona Beatriz deixou de existir.

Acontece que, como Frida deixou de ter pólio, cresceu com os pés perfeitos. E tendo pés perfeitos, naquele dia, aos 18 anos, pegou o bonde que passou antes daquele que se acidentou. Chegou sã e salva à faculdade e se formou em Medicina. Se casou com Alejandro Gómez, teve filhos. Lavou fraldas, torceu cueiros. Não pintou sequer um quadro; não foi artista. Teve uma vida comum, sem as dores das mais de 35 cirurgias, mas também sem ter o dom que nasce da dor. De todas as casas, sumiram todas as pinturas. Rivera, que até então, mesmo considerado um dos maiores pintores da história do México, era apenas um coadjuvante, uma sombra na história de Frida, passou a ter o valor que sempre lhe foi devido. E nenhuma mulher no mundo se inspirou mais nas obras, na vida e nos olhos de Frida Kahlo, que deixaram de ter a expressão forte e triste por baixo das sobrancelhas grossas.

Como não houve arte, não houve exposição na galeria Julien Levy, em Nova York, em 1939. Como não houve exposição, José Onofre, segurança da galeria, não conheceu a Alcina, que estava passeando pela cidade com os pais. Então não se apaixonaram. Não se casaram — e não tiveram uma filha chamada Beatriz.

Ironicamente, Frida foi a mulher que foi justamente por ter se moldado pelo sofrimento. Aliás: apesar do sofrimento. Ela foi além da boa aparência da pele, da perfeição dos membros, enfrentou a estética horrorosa das cicatrizes. Transformou sua dor e sensibilidade em arte. Provou que pode haver beleza a partir do caos. Foi isso que dona Beatriz não entendeu... e agora não faz diferença, ela já não precisa entender mais nada.

Em agosto de 2014, uma cronista do caderno semanal de um jornal de cidade de interior precisou escrever uma crônica que denotasse a beleza que vai além da pele, da capa. Sem muita inspiração, escreveu algo entre a química dos enamorados e os amores que driblam deficiências físicas. Uma pena. Se dona Beatriz não tivesse fuçado o livro de Deus, a escritora, ao fechar os olhos para pensar em beleza, certamente teria lembrado dos olhos fortes e tristes de Frida Kahlo.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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