Ela e eu

sábado, 01 de novembro de 2014

Tecnicamente, ela seria meu inferno astral. Pelo menos é o que João Bidu me disse a adolescência inteira. Mas de todos os seres apressados que fincavam forte seus pés pelos corredores da repartição, ela era a única que flutuava. Como uma aparição. Xinguei-a secretamente muitas vezes, de biscate e outros tantos nomes feios. Era o meu ritual, antes de saber que se eu era metade até então, a outra metade de mim era ela.

Até que um dia, de repente, ela me contou um segredo, do nada, desses que a gente tem vergonha até de lembrar que tem. De nome feio a best friend. Estava sacramentado: talvez ela não fosse das piores. Ou das menos amigáveis. Fato é que eu sempre julguei as pessoas antes de conhecê-las e precisava urgentemente parar com isso. Ela confiou em mim antes mesmo de me conhecer. Aquela cigana dos olhos oblíquos e dissimulados.

Escorpião, ela. Sagitário, eu. Eu, conhecida por dizer xis, trocar mais tarde por ipsilones e, no fim, querer dizer o contrário. Ela, incisiva: é tal. Atesta e dá fé. Assina embaixo e reconhece firma, sempre com a mesma letra adulta. Eu, cartilha de criança, letra torta. Tenho nem rubrica. Ela, gaivota no céu, imagem, fotografia. Eu, fogo de palha. Recibo de rifa, papel de pão. Tinha tudo pra dar errado, ela e eu, mas justamente por isso deu tão certo. Quase que sobrenatural.

Errou a astrologia. Ela não tem nadinha de inferno astral. Nos nossos percursos diários, do pastel de queijo do apertadinho ao shake maravilhoso de Déborah, ela é toda jardim do Éden. Começo e fim de expediente. Sábado, domingo e dia santo. Ela está lá quando eu choro, quando estou com raiva, quando estou com fome, quando estou de morte, quando estou de birra. Até quando nem estou, ela está. Ela estará lá, às vezes só pra me fazer rir. Ou até mesmo só pra cada uma beber sua parte da cachaça que lhe cabe deste latifúndio. Lá em cima escrevi "biscate” e me perguntei se palavra feia pode sair no jornal. Pode? Cachaça pode? Pode trocar por Coca-Cola, que a gente bebe aos montes também.

A amizade, certamente, é bem mais do que "um amor que nunca morre”. É um amor que vive e se pratica. Que se consome, tão intensamente que, no fim, tal como a gente se sente em relação aos filhos, depois de um tempo você nem lembra mais a vida que tinha antes de a amiga chegar. E quanta sorte a vida me deu na mega-sena da genética. O prêmio de ter amigos maravilhosos acumulou todinho em mim.  

É ela. O último ‘vai dormir’ de toda noite e o primeiro ‘cadê você, cacete’ de toda manhã. Tenho orgulho dessa desmiolada como se fosse minha própria criação. Aniversário dela, segunda-feira, mas o tema do Light é abelha, doçura. Mel. Quase não deu para dar os parabéns do meu jeito: letra torta, cadência flutuante, cartilha de criança. Mas não é que casou direitinho? Eis a crônica. Dentro do tema. Abelha-rainha, doçura, mel. Amanda! 

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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