Padim Padi Ciço

sábado, 17 de janeiro de 2015

Bem no meio da quarta série, lá pelo mês de julho ou agosto, os dias ficaram agitados para nós três, as mulheres. Passávamos as tardes a arrumar as malas, a preparar os filmes de 36 poses. Mamãe comprou uma Kodac preta pequenininha, um luxo na época para a classe C. Minha irmã e eu subimos na carroceria, papai guardou as malas e seguimos rumo a Belém.

Pena eu me lembrar tão pouco da primeira grande viagem que fiz. Lembro da ponte do Rio Araguaia, enorme. Dos relógios "Brasil 500 anos” das capitais. As paisagens, perdi todas, pois eu sempre dormia quando entrava no caminhão. Mamãe ainda dizia: um dia você vai se arrepender de não ter ficado acordada. Maceió, Teresina, Fortaleza, São Luís, Belém, eu poderia ter todas elas na minha cabeça, mas não tenho. Estão só numas poucas fotos que guardo em casa.

Viajamos para Belém duas vezes, então as parcas lembranças se misturam. Um dia, mamãe estava fazendo um frango — eu adorava o frango dela — e Késsila e eu brincávamos na terra, perto da roda traseira do caminhão. De repente ela chorou e mostrou a mão pra mim. Um calombo enorme, vermelhão. Diagnóstico: abelha. Entramos todos no caminhão e papai ficou um tempo rodando com ele, pra afugentar as danadas, milhares delas. No espelho retrovisor, só lembro de ver a panela de frango virando inteira no chão.

Sobre as comidas de viagem, lembro ainda de passar quase duas semanas comendo apenas peixe e frango num hotel. Toda vez que íamos almoçar, a atendente perguntava: "peixe, galinha ou gato”? Mamãe achava cada dia mais absurdo servirem gato para comer — levamos duas semanas para entender que era "carne de gado”.

Achei que veria um Norte e um Nordeste secos, cheios de fome; mas vi praias, rios imensos e muito verde. Claro que, quando me aproximava dos cais de porto, via muitas meninas, mais novas que eu ainda, andando à toa entre as cabines de caminhões, entrando em algumas e saindo de outras, numa espécie de atividade comercial que eu só entenderia mais tarde, adolescente. 

Uma única vez conheci a secura do Brasil. Na estrada, certo dia, meu pai me acordou e me fez descer da cabine para tirar uma foto ao pé de uma imagem de Padre Cícero, um ícone na história do Ceará. Essa cena eu guardei em mim, não sei se pela seca que consumia as vaquinhas murchas nos pastos áridos, cada uma mais solitária e esquelética que a outra; não sei se pela fé ou pelo respeito que meus pais me impunham. Descemos, nós, as crianças, ficamos de pé embaixo da imagem, tiramos a tal foto e mamãe fez o sinal da cruz. Só aí seguimos viagem. De vez em quando me pego rezando para o Padim Padi Ciço, sempre que me sinto árida como aquele deserto que mata as pessoas de sede; porque mesmo na seca e na fome, elas nunca deixam de ter fé.

Gostaria de ter vivido mais momentos assim com meus pais. Me falta esse pedaço. Cada narrativa de viagem que ouço, cada Globo Repórter que assisto, cada ida à capital do estado que seja faz ferver em mim cada vez mais forte esse desejo de viajar, de estar em outro lugar, conhecer outras gentes, outras gastronomias. Afinal, comer e viajar são as quatro melhores coisas do mundo.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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