Cinquenta tons de esquisitice

sábado, 28 de fevereiro de 2015

No fim, quando eu acabei de lavar a louça do jantar, saí quase como Arquimedes no episódio "Eureka, eureka”, mas no meu caso seria algo como "Estou curada, estou curada”. Acontece que sou acometida de pequenas manias, pequenas mesmo, talvez passassem até imperceptíveis, não fosse a louça do jantar me jogar no colo o tema para uma crônica: essas obsessões as quais nos agarramos.

Não sou muito organizada, diria até que sou do tipo bagunceira, mas apenas em algumas áreas da minha vida. Pode ter passado o Katrina em casa; a garrafa de iogurte pode ir parar no guarda-roupa, mas eu não durmo em cama desarrumada. Igual ao Comendador da novela, sabe? E a etiqueta da colcha tem que ficar do lado direito da cama, onde dorme o marido. Aliás, há umas semanas o meu resolveu, do nada, dormir do lado esquerdo, aí parece que não estamos em casa, que eu estou de visita, sei lá.

Outra mania clássica, que não só eu tenho, muita gente tem, é a de não deixar os sapatos virados, de sola pra cima. Em junho completo oito anos sem minha mãe, então esta é uma mania realmente indefensável. Acendo a luz sem olhar para a lâmpada: ou viro a cara ou fecho os olhos. O mesmo com o chuveiro. Não uso roupa verde. Não como comidas misturadas: cada uma tem seu espaço no prato.

Faço quantas voltas forem possíveis nas portas que tranco, outro costume ilógico: afinal, o ladrão que porventura quiser usufruir dos parcos recursos de que disponho em minha casa vai as portas, não abri-las meticulosamente volta a volta com um grampo de cabelo. E por falar em cabelo, nele reside a mania mais absurda de todas. Bem, não sem um certo constrangimento, abordo o problema: eu tenho a mania de arrancar fios de cabelo.

O método começou simples. Sentia algo parecido com uma coceirinha na cabeça, não daquelas que tínhamos na infância por causa de piolhos, mas uma sensação mais abstrata que concreta ou física, que me gritava nos tímpanos "Ei, você! Algo não está certo no seu corpo”. É como se realmente houvesse um corpo estranho invadindo o meu pedaço e, tal qual gangster, partia em busca de algo que "deixasse tudo nos conformes”, como diriam os de antigamente. E arrancava um fio, dois, quinze. Embaraçoso.

Já sofri, claro. Nunca mantive cabelos longos, tomar um banho de piscina é um suplício, diariamente há sempre quem me dê um tapa na mão quando a percebe sôfrega entre os nós. Sim, nós. Porque aos poucos eu fui aperfeiçoando o método. Quer dizer, eu escolho cuidadosamente o fio conforme o grau de incômodo, textura, comprimento, e não havendo possibilidade de arrancá-lo naquele momento, faço um ou dois nós nele, para encontrá-lo mais tarde, como a Defesa Civil demarcando casas para serem demolidas.

Até os 17 anos, não falei com ninguém a respeito. Era algo só meu, uma desordem que teria de carregar comigo aonde quer que eu fosse, a marca de Caim imposta nos meus cabelos, me dizendo que a beleza física não era pra mim. Mas ao adentrar no mundo mágico da internet, descobri inúmeras pessoas com este mesmo problema, que tem nome (Tricotilomania), tratamento e variações ainda mais sofríveis, como quem come o cabelo ou arranque até os cílios.

Quem sou eu para apitar o apito do mundo? Para ditar definições científicas, psíquicas, paranormais ou astrológicas das minhas, suas, nossas manias? Há quem me pense louca, mas enfie mais de 4.500 substâncias tóxicas goela abaixo com um cigarro. E quem come a própria pele dos dedos e pedaços de unhas, pode falar o quê de nós, leitores? E eu, parcialmente careca, vou falar o quê? De quem?

Sinto-me nua, ao me expor, mas não nudez de peitos ou coxas. Nudez de alma. A rainha está nua, vocês são capazes de ver? Aquele dia, na pia, depois de arrumar a louça no escorredor, percebi que não a havia organizado como de costume (garfos e facas num compartimento, colheres em outro, segundo cores e materiais em que foram confeccionados, pratos colocados de modo decrescente, do maior ao menor, também separados segundo a cor). Aquilo ali estava a farra do boi. A faca de cabo roxo beijava o garfo sem cabo. Pensei que estava curada. Mas não, continuo com a dor e a delícia de ser quem sou, aproveitando o momento quase propício a revelar peculiaridades (vide esse livro, esse filme aí no cinema, 50 tons, agradando tanta gente). As camisetas continuam separadas por cores e a mesa de trabalho cheia de cabelos, pretos e brancos, para espanto e terror de Dona Clélia, a moça da limpeza.

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Ana Blue

Blue Light

O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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