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Carne Viva
Eu poderia ter escolhido o que quisesse de presente no meu aniversário de quinze anos — resguardando, claro, a condição financeira da família, que nunca foi lá essas coisas. Poderia realmente ser o que eu quisesse, desde que não latisse — "Você não sabe nem tirar as calcinhas do box do banheiro, como é que vai querer ganhar um cachorro?” — e coubesse no nosso orçamento esquelético, a que eu estava bastante acostumada, por sinal.
Apaixonada pelo Kiss e metida a roqueirona rebelde, pedi a minha mãe que intercedesse por mim e solicitasse ao meu pai, lá em Belém, um aparelho de som novo. O mais simples, o mais barato, podia até ser da CCE que pra mim já estava valendo. Eu queria ter um daqueles aparelhos que tivessem bandeja de 3 CD’s e os CD’s girassem segundo a minha vontade. Pensando bem, não precisava ser novo. Poderia ser qualquer coisa melhor que o que eu tinha na época: não havia máquina de lavar roupa em nossa casa, então todas as noites eu ia para o tanque lavar meias e camisas de uniforme; em cima do tanque, no batente da janela, eu colocava um velho aparelho de som de Daniele com as fitas K7 que Tatiana gravava pra mim. Mamãe chamava de caixa de abelhas, mas eu sempre chamei de única opção.
Dias antes do meu aniversário, uma sucessão de acontecimentos — sem a menor relação uns com os outros — me fez acreditar que eu realmente ganharia o meu presente. Primeiro o tio Toninho, irmão de meu pai, me deu um CD do Kiss. Por que diabos alguém daria uma rapadura a quem não tem dentes? É uma conspiração, a meu favor, claro! Não lhe tirei sequer o plástico: aguardei ansiosamente sua estreia. Depois, às vésperas do grande dia, não é que um homem muito parecido com meu pai sentou-se bem à minha frente, no ônibus, naquelas cadeiras mais altas que as crianças todas se estapeiam para buscar lugar! E ainda tinha apoiada entre seus pés uma grande caixa de papelão. Ainda hoje lembro da sensação de congelamento dentro do meu peito, dividido entre estragar-lhe a surpresa e cair em abraços ou me fingir de cega, surda e muda, como aqueles três macaquinhos engraçados. No fim da viagem, chegando onde eu morava, vi o senhorzinho grisalho descer do coletivo e tomar o caminho de casa com sua grande caixa de alfaces. Não era meu pai. E eu só o veria, na verdade, anos depois. Engraçado que, quanto mais o tal aparelho se tornava sonho distante, menos ele importava. Só teria sido o máximo voltar a ser a filhinha do papai, que eu já não era desde o último presente: uma barbie grávida, que vinha com uma barriga falsa e um bonequinho barbie bem xexelento.
Então, pedi uma tatuagem. Pura e simplesmente. Tinha um parente tatuador, tinha uma boa ideia na cabeça, tolerância à dor, depois de ter sofrido tantas, dane-se o Kiss, pedi uma tatuagem. Minha mãe ficou horrorizada e com medo que eu a partir da tatuagem arrumasse uma gangue e fosse presa, mas não voltou atrás com a palavra. Fui toda adulta para o estúdio, mas na hora H perdi a coragem. Não fiz a dita-cuja. Ainda bem, porque hoje eu estaria bastante arrependida de ter um "Carpe Diem” em letras estilizadas na cintura, que já não é mais tamanho 36 como era. Pena que eu não escaparia da malfadada estrela no ombro, anos mais tarde.
No dia 10 de dezembro de 2001, meu aniversário, Daniele trouxe para minha casa, emprestado, seu aparelho novo em folha, da Philips, 3 bandejas e surround — nunca entendi o que significa surround, mas creio que seja uma coisa importante. Fitei por longos momentos o meu CD do Kiss dentro da caixa, ainda envolto no plástico e com a etiqueta de preço rabiscada. Eu tive duas escolhas: me fechar e sofrer a rejeição, ou fazer dos meus quinze anos uma festa. Pois fiz uma festa. Depois o CD voltou para a gaveta e o aparelho, para o quarto de Daniele.
Ganhei um som dois anos depois, no Dia das Mães — fui mãe antes mesmo de deixar de ser filha. Também fiz tatuagens, sem frases batidas, pelo menos. Coisa simples: uma Colombina nas costas, eternizada com seus amores, Arlequim e Pierrot. Talvez para me lembrar quem sou: alguém que está sempre dividido entre o corpo e a alma, mas isso fica para uma outra hora. Esta não é uma crônica sobre mim. Essa é uma crônica sobre eternidades, como o Kiss já cantava lindamente em Forever, do Hot in the Shade, álbum de 1989. É, eu sei essas coisas de cabeça. Tatuagens, amores, tragédias são coisas que a gente jamais esquece.
Ana Blue
Blue Light
O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.
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