A mulher da minha vida

sábado, 07 de março de 2015
Foto de capa

Quantas histórias começam como as minhas. Uma mãe sem emprego, um casamento que não deu certo. Um pai que vai embora. Uma caixa de correios que não entende divórcio, depressão, câncer, anemia. E permanece soberana, com a sua função única de cuspir más notícias. 

Lembro de mim, sentada aos pés da velha Singer barulhenta, contando causos das aulas de ciência ou geografia. O dia, esse espaço de 3.600 segundos disponíveis para se fazer a coisa certa, na infância longo demais, hoje me parece tempo onírico, um curta-metragem bobo e em looping eterno. Uma sessão da tarde eternizada no meu cérebro: mamãe costura, prega botão. Eu conto meu dia na escola. Acho que peguei todas essas vivências da infância e transformei-as nesse quadro de bordas esfumaçadas para me torturar: mamãe corta o molde de um novo blazer para Michelly, depois limpa a velha mesa de madeira. Pega a mistura para bolo de laranja Dona Benta e se põe a bater a massa. Minha mãe está permanentemente de pé, em meus sonhos, batendo massa de bolo e cantando Djavan.

Quantas histórias começam assim. A mãe costureira, bordadeira, lavadeira, secretária. Acordada às seis e meia da matina, passando café e contando moedas. A mulher da minha vida surpreendentemente dava conta. Seu dia não tinha só 24 horas. Nunca senti fome ou frio, nunca usei roupa suja e antes dos 12 já fazia curso de informática. Nunca entendi como ela pagava, como mantinha nossa vida limpa, como conseguia afastar todos os demônios de nossa porta; mas hoje, mãe, eu entendo. Ela era mais que mulher: tinha o poder sobre-humano de fazer tudo dar certo no final. De botar cada coisa em seu lugar. De trabalhar desgraçadamente todos os dias da semana e, ainda assim, manter as unhas lindas e a aparência jovem. Pena que morreu cedo, no auge da vida, ignorada solenemente pelo sistema único de saúde, que jura de pés juntos nos defender.

A mulher da minha vida inspira todas as letras que ponho num papel, os caracteres da tela, as rimas da poesia. Minha mãe está presente até no contracheque que assino, sua imagem está desenhada até na ponta da caneta Bic que ainda não comprei. Escreverei seu nome, Ana Maria da Silva, em todos os textos de dia das mães, da mulher, do amigo, até no dia de ação de graças que nem mesmo comemoramos aqui pelas bandas do Trópico de Capricórnio, até que todos os editores de todos os jornais e livros enjoem de mim. Mesmo que seja apenas mais uma declaração de amor a uma ana maria como tantas anas marias, que gerarão outras tantas anas como eu: dando conta da vida, fazendo das tripas, coração. Acordada às seis e meia da matina. Passando café. Contando moedas.

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Ana Blue

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O que dizer dessa pessoa que a gente mal conhece, mas já considera pacas? Ana Blue não tem partido, não tem Tinder, é fã de Janis Joplin, parece intelectual mas tem vocação mesmo é pra comer. E divide a vida dela com você, todo sábado, no Blue Light.

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