Arte injetada na pele

sexta-feira, 13 de março de 2015
por Jornal A Voz da Serra
Arte injetada na pele
Arte injetada na pele

Ana Borges

O que pode definir o significado da tatuagem? Rebeldia, um jeito de ser, expor uma ideia, contar uma história, homenagear uma pessoa, marcar um fato, fazer parte de um grupo, uma "tribo”? Ou qualquer outra razão? Bom, acho melhor não definir. No contexto da sociedade contemporânea, o individualismo induz muitas pessoas a fazerem de sua pele o local do registro de ideias, valores ou da simples vaidade. E essa prática é tão antiga quanto a mais remota civilização de que se tem notícia. Um exemplo é o "homem de gelo”, Ötzi, a múmia de mais de 5.000 anos descoberta em 1991, que tinha em seu corpo mais de 50 tatuagens. Enfim, a prática da tatuagem era e continua sendo — e em franca expansão —, comum em todos os cantos do planeta, em todas as épocas, por mil e uma razões. No Brasil, diversas tribos indígenas tinham tatuagens pelo corpo. Porém, por aqui esse hábito não se popularizou a partir deles, mas através do dinamarquês Knud Gregersen, que chegou ao Brasil em 1959 e ficou conhecido como Lucky Tattoo. Ele foi o primeiro tatuador profissional no Brasil, considerado o precursor da tatuagem moderna. Nesta entrevista com o tatuador friburguense Arthur Galluzzi, o talentoso R2, vamos saber mais sobre o assunto. 

 

Light – Por que você escolheu essa profissão? 

Arthur Galluzzi – Porque desenho desde que era criança, sempre gostei de pintar, colorir, criar imagens. Nunca parei de desenhar, mesmo quando fui professor de inglês por quase dez anos e depois tive um restaurante. Também gosto de dar aula e de cozinhar, mas meu maior prazer é tatuar. E só me dedico a isso há uns sete anos. 


Mas há várias formas para um artista se expressar, em telas, muros, paredes, madeiras...

Mas nada se compara à pintura em um corpo, ir desenhando por baixo da pele de uma pessoa algo que vai ficar para sempre, até depois da morte. E há também o envolvimento interpessoal, que, no meu caso, não sinto diante de uma tela. Eu preciso disso pra criar. No corpo, a arte transcende, vai além. 


Realmente, visto dessa forma, é um trabalho que envolve duas pessoas, como o criador e a criatura, que podem ficar ligados por alguns instantes, horas, dias ou meses, dependendo do desenho a ser feito. Como você conduz esse momento?

Primeiro, com muito cuidado no que diz respeito às condições de trabalho e dos equipamentos utilizados. Depois, com o tipo de pessoa que me procura para fazer a tatuagem. Gosto de conversar porque vou injetar nela a arte criada por mim mesmo, que vai ficar pra sempre, uma parte de mim, naquela pessoa. Dificilmente aceito simplesmente copiar algo que já trazem pronto. Meu trabalho começa na prancheta e termina na pele do cliente. 

Apesar de ser uma arte milenar, e cada vez mais usada, é verdade que a tatuagem ainda é discriminada?

É. E eu tenho certeza que esse preconceito nunca vai acabar, apesar de quase todo mundo ter alguma tatuagem, mesmo que seja bem discreta e pouco visível. 


E essa coisa da dor, como você explica essa pré-disposição de se submeter a um procedimento tão doloroso, só por um desenho no corpo?

Só um desenho...? Bom, entre outros, elevar a autoestima, por exemplo. 

 

Peraí, como assim, autoestima? Explica isso direito.

(Arthur ri da minha incredulidade). Ana, olha só, a dor eleva a autoestima porque o sujeito se propõe a passar por ela para ter o que quer. É como um desafio. A pessoa pensa: "Eu quero muito uma tatuagem. Mas dói. Será que eu aguento? Será que eu consigo suportar, seja lá quão dolorosa possa ser?” Se ela quiser mesmo, enfrenta. E quando termina, ah, você não faz ideia da alegria, da satisfação que a pessoa sente. E eu também! Ela pensa: "Consegui. Venci!” Entendeu?


Bom, visto desse ângulo, como um desafio, essa teoria se aplica a muitas batalhas que temos que enfrentar na vida, que sabemos que vai machucar, se não fisicamente, emocionalmente, entre outros aspectos da natureza humana...

É isso. Uma simples questão do que é importante para cada um de nós. E muitos estão dispostos a pagar esse preço, porque querem. E pronto.


Por que uma pessoa se tatua dos pés à cabeça, com desenhos que lembram cobras, peixes, com imagens bizarras?

Para se sentirem bonitas, para se exibirem, e com muito orgulho. Afinal, elas suportaram um processo demorado, que exigiu muita disciplina, coragem. Acho normalíssimo, admiro essas pessoas. Para muitos é algo extremo, agressivo até, mas pra mim é fantástico. Sabia que tem gente que tatua na parte branca do olho? Pois tem. Esse método foi criado dentro de presídios. (Aqui, penso comigo que essa entrevista tá ficando pra lá de Bagdá, e rio de mim mesma).


Essa profissão é regulamentada?

A profissão de tatuador no Brasil não existe. O que temos é a profissão de micropigmentador, considerada uma "sub-classe” associada à estética.


E se um procedimento causa um problema numa pessoa, uma infecção, deformação, contaminação, algo do tipo. A quem ela pode recorrer, exigir reparação? 

Como não é regulamentada, não tem um Conselho para julgar e punir, se for o caso. Recomendo que o cliente procure se informar muito bem sobre o profissional que vai contratar. Se algo der errado, ela pode procurar a Justiça, denunciar, entrar com uma ação, e aí vai ser aquele processo que costuma não dar em nada. É complicado, mas, por outro lado, é muito raro alguém ter problemas desse tipo. Pelo menos não temos conhecimento de que aconteçam.


Você morou muitos anos nos EUA, aprendeu a falar em dois idiomas simultaneamente, com seus pais, e só voltou ao Brasil já adolescente. E foi dar aulas de inglês no curso da família. Essa volta foi legal?

Do ponto de vista profissional, não tive problemas por causa da empresa da família. Era seguro para mim. Mas teria sido muito melhor ter ficado por lá. As coisas por aqui são sempre difíceis, as crises não passam, não acabam e, comercialmente falando, é desanimador. O que eu vejo são lojas, negócios de vários segmentos abrindo e fechando. Quanto a mim, estou bem, trabalho aqui, no Rio, em Niterói, São Paulo, frequento congressos, encontros, participo de workshops realizados em várias cidades do país, então, estou sempre atualizado. Não tenho do que me queixar porque faço meu próprio horário, trabalho quando quero, conduzo a minha vida do meu jeito, respeitando a pessoa que sou. 


Mas você dedica um bom tempo para desenvolver suas técnicas, aprimorar suas habilidades.

Não abro mão disso. Meu trabalho não é só artístico, é de educação também, porque falo de arte com as pessoas, levo-as num "passeio” pelo universo das artes plásticas. Me dedico muito, invisto no meu aprimoramento. Eu quero ser o melhor profissional, sempre. Não repito desenhos, meu trabalho é personalizado. Se eu tiver a menor dúvida sobre a qualidade de uma obra, não faço. Minha criação deve ter a minha marca. Por isso raramente aceito tatuar algo que não tenha sido criado por mim. Faço questão de reiterar isso porque é o meu nome que está em jogo, a minha pessoa, o profissional que sou.

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