Feminicídio: Os homens que não amam as mulheres

domingo, 22 de março de 2015
por Jornal A Voz da Serra
Feminicídio: Os homens que não amam as mulheres
Feminicídio: Os homens que não amam as mulheres

Ana Blue

Ela, um tom mais vermelho de batom, roupa da moda, depilação. Ele, ansiedade, cueca nova, um pouco mais de capricho na lábia. Início de relacionamento é quase um filme de sessão da tarde: sabe-se como começa, como termina, mas nem por isso a gente deixa de assistir. A busca pela outra metade da laranja envolve muitos pormenores. O gosto combina? A química é boa? Rola mesmo uma afinidade ou algo assim? Uma vez eleito o par ideal, segue-se esta saga épica de incontáveis capítulos chamada vida a dois.

Este poderia ser só mais um texto sobre o amor e a parte bonita dos relacionamentos, mas não é. Certo seria se todos começassem — e terminassem, quando é o caso — de forma mansa, respeitosa. Mas, infelizmente, não é raro ler nas páginas policiais ocorrências de laços de amor que se desatam em hospitais ou delegacias. Ressalte-se que ambos os parceiros, independentemente do gênero, podem ser propensos a perder o controle vez em quando, já que o ser humano não é um ser exato, com atitudes programadas e 100% de planejamento prévio de suas ações. Contudo, a violência doméstica existe e pode ser recorrente e gradativa, chegando-se até mesmo a causar a morte da vítima.

Especificamente no caso da violência doméstica contra a mulher, não se trata somente de espancamentos — além da integridade física da mulher, sua moral, sua dignidade e seu bem-estar podem ser igualmente alvos de atentado através de atitudes ofensivas que, muitas vezes, nem chegam a culminar em agressão física. O agressor pode não causar uma marca no corpo, mas o faz na saúde psíquica. E pior: muitas mulheres, equivocadamente, se isentam das estatísticas por acreditarem que aquele tapa, aquele xingamento, são atitudes esporádicas. Que não vai mais acontecer. Que "homem é assim mesmo, perde o controle”. E se mantêm no ciclo de violência sem nem mesmo buscar apoio ou ajuda, seja do governo, da polícia ou de entidades assistenciais. 

Com base nesta questão social, além de considerar a violência contra a mulher em outros ambientes, como nas relações profissionais, onde não existem laços afetivos entre vítima e agressor, no último dia 9 de março foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff a Lei Federal nº 13.104, conhecida como "lei do feminicídio”, ou seja, quando a mulher é vítima de crime contra a vida justamente pelo fato de ser mulher. São casos como as tentativas e assassinatos cometidos pelo parceiro, como ilustramos no início da matéria, ou quando há mutilação de partes do corpo que tenham relação direta com o gênero feminino, ou ainda crimes com razão discriminatória. A referida lei altera o código penal para incluir o feminicídio no rol dos crimes ditos hediondos, ou seja, que merecem maior reprovação por parte do Estado, sendo inclusive inafiançáveis e sem direito a redução de pena. 

Na prática, isso significa que casos de violência doméstica ou discriminação contra a condição de mulher passam agora a ser considerados como qualificadores de um crime. Vale ressaltar que homicídios simples preveem reclusão de 6 a 12 anos, enquanto que o homicídio qualificado tem pena de 12 a 30 anos. A lei pontua determinadas circunstâncias como agravantes: violência contra a mulher ocorrida durante a gestação ou até três meses após o parto; contra menor de 14 anos ou acima de 60 ou ainda contra pessoa portadora de deficiência; e crime ocorrido na presença dos filhos ou dos pais da vítima. Estes agravantes podem aumentar a pena em até um terço.

Segundo Rosângela Cassano, advogada, presidente da OAB Mulher e coordenadora do Centro de Referência da Mulher (Crem) em Nova Friburgo, uma tática comumente utilizada pela defesa do homem que mata a companheira é a de que o crime ocorreu "no calor do momento”. Essa justificativa contribui para a atenuação do crime e consequente diminuição da pena. "O réu, que seria julgado por crime doloso, com intenção de matar, acaba sendo beneficiado, por assim dizer, com a possibilidade de responder por homicídio culposo, em que a pena é menos severa”. Ainda segundo a advogada, com o advento da lei do feminicídio esses crimes poderão ter punição compatível com a sua gravidade.

Ainda assim, a lei gerou polêmica. Se por um lado ela busca uma punição exemplar contra o criminoso, por outro, juristas divergem quanto a sua concepção e real efetividade, seja por representar uma diferenciação de gênero tida como desnecessária, seja por — mesmo soando semanticamente "agradável” à população — provavelmente pouco contribuir para o recuo das estatísticas da violência contra o público a quem diz defender. Ou seja, segundo os discordantes, teoricamente parece um avanço no combate à violência, mas foi concebida baseada em elementos ideológicos, que, no fim, acabam por se mostrar redundantes com a norma penal vigente até então. Homicídio é homicídio, seja a vítima um homem, ou uma mulher, tendo ou não relação íntima com seu algoz.

Rosângela entende os argumentos de quem concorda e de quem discorda com a efetividade da lei. Ela explica que em 2014, por exemplo, foram poucos casos de mulheres mortas em consequência da violência doméstica, mas que os casos de violência continuada são muito mais frequentes. "Uma lei que aumente a punição do réu é mais um importante passo para a defesa deste grupo vulnerável da população brasileira e que merece, sim, essa proteção diferenciada, ainda que esta mesma lei gere polêmica em relação a sua real efetividade. O aumento da pena ajuda a inibir a ação do agressor e contribui para que a mulher se sinta segura para denunciar sua condição doméstica. Mas claro está que além desta medida punitiva, é essencial que o poder público, em todas as esferas, amplie a criação e a efetivação de políticas públicas de prevenção e combate à violência contra a mulher. É preciso sempre trabalhar a cultura da prevenção: é importante punir o assassino de uma mulher? É, lógico. Mas num caso desses, nada mais se pode fazer pela mulher que morreu. Por isso devemos agir principalmente em prol da mulher que sofre esta violência continuada, tirá-la dessa situação e trazê-la de volta para uma vida saudável e feliz, ao lado de pessoas que a tratem com respeito e não com agressividade”, finaliza a advogada.

Independentemente das opiniões concebidas após a promulgação da lei, uma coisa é certa: é importante que se tenha uma visão, inabalável, sobre a mulher — Vermelho? Só no esmalte ou no batom. Escorrendo no canto da boca, jamais. 

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TAGS: Mulher | Violência
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