Antonio Pernambuco: o primeiro escravo

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Parte 1 

A representação que se tem de Nova Friburgo é de uma cidade com uma tradição herdada de suíços e de europeus, de um modo geral, em razão da colonização e da imigração ocorrida do velho mundo para o Brasil durante o século XIX. No entanto, Nova Friburgo não foi uma exceção e sua organização social foi pautada no eixo central entre senhores e escravos, chegando esses últimos a representar quase metade da população. Procuraremos demonstrar através de um processo judicial ocorrido em razão da morte de um capataz de uma fazenda, em uma freguesia de Nova Friburgo, como se desenrolavam as relações nas unidades de produção agrícolas no momento em que a escravidão sofria forte pressão da Inglaterra para a sua extinção. 

Em 1830, o café começa a despontar como importante produto de exportação do Brasil. A lavoura cafeeira da província fluminense prosperava e necessitava cada vez mais da mão de obra escrava. Nesse período, intensificou-se o tráfico interno e as províncias do norte tornaram-se grandes exportadoras de mão de obra escrava para as províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo. As tensões entre os administradores das fazendas se intensificam, já que os escravos do norte pareciam ter um comportamento diverso dos do sul. Algumas leis começaram a colocar entraves na aquisição de escravos comprados nas províncias do norte, notadamente de Pernambuco, uma vez que associavam esses escravos à violência contra administradores e feitores das fazendas, insurreições e formação de quilombos. Nova Friburgo recebeu alguns desses escravos vindos do norte.

Provenientes dos engenhos de açúcar, o choque com a organização do trabalho das fazendas de café na província fluminense ocorreria com frequência, acarretando fortes tensões sociais. Em algumas fazendas, os escravos possuíam pequenas roças e animais de criação para a venda e ganhavam alguns trocados nos dias de descanso, trabalhando a "jornal”. Alguns administradores parecem ter desrespeitado essa prática costumeira, que os historiadores denominam de brecha camponesa. Os escravos vindos do norte queixavam-se dos horários das refeições, dos alimentos que lhes eram servidos, do tratamento cruel, com pancadas sem razão, e dos castigos rigorosos. Possuíamos um episódio bem documentado ocorrido em uma fazenda de Nova Friburgo que nos mostra esse nível de tensão. Mergulhar no processo judicial instaurado para se investigar o homicídio do ferreiro é conhecer as relações sociais entre senhores, agregados e escravos, envolvendo histórias de amor, ciúme, vingança, hierarquia e sociabilidade.  

Em 1850, na fazenda da Ponte das Tábuas, localizada na Freguesia de São José do Ribeirão, em Nova Friburgo, uma fuga de escravos terminou com a morte do ferreiro da fazenda. Na ocasião, Nova Friburgo contava com aproximadamente 37% da população formada por escravos. Diferentemente das outras fazendas da Freguesia de São José do Ribeirão, produtoras de café, a fazenda Ponte das Tábuas se dedicava a produção de alimentos como milho, feijão, abóbora, a manufatura de anil e a criação de gado bovino, porcos e galinhas. Pertencia ao Comendador Boaventura Ferreira de Maciel. Nessa história, um protagonista: o escravo Antônio Pernambuco. Com 28 anos de idade, solteiro, trabalhador da roça, estava na fazenda havia quatro anos quando ocorreu o crime. Fora nomeado feitor pelo administrador João Antônio quando chegara à fazenda. Era de sua confiança e os demais escravos o obedeciam e o respeitavam como o "primeiro escravo” da fazenda, com superioridade sobre eles. Porém, Antônio Pernambuco foi destituído do cargo. O administrador colocou-o "em ferros” durante quatro meses, acusado de "ser arteiro”, roubo e da prática de feitiçaria. Na realidade, aprendia com um escravo que ia à fazenda a manipulação de remédios caseiros para curar as doenças que atacavam os cativos, já que o administrador se recusava a tratar-lhes. Defendendo-se das acusações de roubo, Antônio Pernambuco declarou que na vila de Nova Friburgo não havia ninguém que o tivesse visto vender alguma coisa da fazenda, salvo as esteiras de palha que ele fabricava. Na verdade, era o administrador João Antônio quem roubava as coisas da fazenda, como animais e sacos de feijão, e as vendia na vila, acusando os escravos e punindo-os rigorosamente. Porém, mesmo depois de destituído do posto de feitor, os parceiros continuaram estimando e obedecendo Antônio Pernambuco. Sua liderança era inquestionável e isso iria se refletir na fuga dos escravos. 

Continua na próxima semana.  


Janaína Botelho é professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora

de diversos livros sobre a história de Nova Friburgo. Curta no Facebook "História de Nova Friburgo”


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Janaína Botelho

História e Memória

A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.

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