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A tirania dos médicos higienistas
sexta-feira, 27 de dezembro de 2013
NOVA FRIBURGO: CIDADE SALUBRE
Ultima parte
Até meados do século XVIII, as cidades no Brasil tinham sido praticamente abandonadas por Portugal. O século XIX recebeu essa desordem urbana praticamente intocada. No período colonial, a conduta anti-higiênica dos habitantes era um dos empecilhos à saúde pública. As epidemias sempre foram fantasmas para a administração colonial. A população era dizimada por ocasião de surtos epidêmicos e mesmo fora desses períodos apresentava uma taxa de mortalidade elevada em virtude do caos sanitário. No entanto, com a chegada da Corte, em 1808, a Coroa reconheceu o valor político das ações médicas. O período joanino marca o início deste processo. A palavra-chave foi salubridade. Os médicos apossam-se do espaço urbano e imprime-lhe, como os tiranos da Grécia Antiga, as marcas de seu poder. A normalização médica da família brasileira operou-se em estreita correspondência com o desenvolvimento urbano e a criação do Estado nacional. Em 1829, é fundada a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro. Essa entidade representava o grupo médico que lutava para se impor junto ao poder central como elemento essencial à proteção da saúde pública e ordenação da cidade. Os códigos de postura municipais passam a adotar recomendações das comissões de salubridade, o que representava uma vitória política.
Até o final do século XVIII, a racionalidade do saber médico pouco se distinguia do conhecimento empírico dos jesuítas, pajés e curandeiros. A prática curativa era essencialmente a mesma: sangria, purgativos, infusões com plantas e pós, dietas, etc. No século XIX, a medicina vai combater esta situação, procurando monopolizar o saber, convergir e concentrar na figura do médico o direito de assistir os doentes. Os indivíduos, secularmente habituados a lidar com o conhecimento empírico da cura, custavam a crer na superioridade da medicina científica. Mas a medicina social, através de sua política higiênica, invade os lares, mormente o da elite oitocentista. Uma das mais importantes conquistas do movimento higienista foi a imposição do médico à família, originando a figura carinhosa e firme, doce e tirânica do médico da família. Os indivíduos aprenderiam a cultivar o gosto pela saúde, exterminando a desordem higiênica dos tempos coloniais. A educação física defendida pelos higienistas criou o corpo saudável. Corpo robusto e harmonioso, organicamente oposto ao corpo relapso, flácido e doentio do indivíduo colonial. Os higienistas criticaram a proximidade dos escravos com as famílias, por serem portadores de doenças e igualmente de desregramentos morais e sexuais. A virulência na condenação ao escravo ocupou uma posição extremamente importante nas manobras do poder médico. A condenação médica à escravidão fundamenta-se na degradação dos costumes familiares: o escravo gerava a preguiça, a indolência, a soberba, a vaidade e a tirania do seu senhor. Passou-se a excluir os escravos do serviço doméstico, tornando-se de bom tom entre a elite brasileira ter serviçais brancos. Os higienistas interferiram em todos os aspectos do cotidiano: na indumentária, remendando adequar a roupa ao clima; na amamentação feita por escravas, preconizando o aleitamento pela mãe; introduzem a ginástica nas escolas burguesas, aconselhando o salto, a carreira, a natação, a equitação e o esgrima. No tocante às relações familiares, ficaram proscritos pelos higienistas os casamentos consanguíneos e contraindicavam o casamento entre mulheres jovens e homens muito idosos, duas práticas constantes do período colonial.
Matas, pântanos, rios, alimentos, esgotos, água, ar, cemitérios, escolas, prostíbulos, matadouros e as residências foram espaços atraídos para a órbita médica. As habitações deveriam ser higiênicas prescrevendo ambientes arejados e iluminados. Era o fim das alcovas escuras dos tempos coloniais. A escolha do lugar da casa, a técnica de construção, assoalhos, paredes, dimensões das janelas e iluminação, nada escapava à ordem tirânica dos médicos. A habitação sadia deveria obedecer a certas regras onde o coeficiente de saúde variava em função da relação entre o número de indivíduos e a dimensão dos cômodos que os abrigavam. Os aposentos deveriam guardar certa proporção entre o número de pessoas e metros cúbicos de ar puro. A Câmara Municipal de Nova Friburgo aderiu o proselitismo médico-higiênico. O Código de Posturas passou a regulamentar a construção civil proibindo a edificação e reformas de cortiços. Havia alguns bas fonds no centro da cidade, como o Beco da Cadeia (Monte Líbano) com casebres sustidos pela graça de Deus, como registrou o memorialista Henrique Zamith, e o Beco dos Arcos (Rua do Arco). Ficou igualmente proibida, no perímetro da décima urbana, a construção, reconstrução e reparos de "meias-águas”.
Nova Friburgo se consolida, no final de século XIX, como a cidade salubre. Recebia tuberculosos e indivíduos que fugiam de epidemias como a febre amarela e o cólera. Abrigou o maior Instituto Sanitário Hidroterápico da América Latina, pois o seu clima e a sua água auxiliavam na cura de diversas doenças. Logo, o clima foi um determinante em sua história até que a evolução das pesquisas científicas desmistificasse que esse fator auxiliava na convalescença de diversas doenças. Mito ou não, o certo é que havia essa crença e não faltam relatos de testemunhos em jornais, muito comum à época, da cura em razão do clima frio e seco de suas montanhas taumaturgas: "O clima e a água desta abençoada terra, dão alento aos vivos e ressuscitam os mortos; pode-se afoitamente dizer” (O Friburguense, 29/12/1895).
Um santo Natal a todos os leitores de A Voz da Serra.
Janaína Botelho é professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora de diversos
livros sobre a história de Nova Friburgo. Curta no Facebook a página "História de Nova Friburgo”
Janaína Botelho
História e Memória
A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.
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