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“Num vô fazê a janta”: o destino de ex-escravos - Parte I
quinta-feira, 06 de junho de 2013
A data era 13 de maio de 1888, dia da libertação dos escravos. Era o fim de três séculos e meio de escravidão no Brasil. Na vila de Nova Friburgo era realizada uma sessão de júri, no qual participavam vários fazendeiros da região, inclusive da freguesia de São José do Ribeirão. Essa freguesia era a mais próspera do termo de Nova Friburgo, grande produtora de café e consequentemente com o maior plantel de escravos. Ecoa célere na vila a notícia da libertação dos escravos. Uma "pretinha” saiu esbaforida de uma residência gritando: "Num vô fazê a janta! Num vô fazê a janta! Num vô fazê a janta!”. Na sala do júri, os fazendeiros não puderam dissimular o seu aborrecimento. Como permaneciam vários dias na vila até terminar o último julgamento, o juiz, percebendo a gravidade da situação, autorizou que os fazendeiros retornassem às suas propriedades. Nas estradas da freguesia de São José do Ribeirão, durante vários dias, muitos ex-escravos perambulavam sem destino, cantarolando, e alguns chegaram a invadir algumas propriedades. Um desses fazendeiros ao chegar à sua fazenda ainda encontrou os seus escravos na labuta, sem conhecimento da grande "novidade”. Reuniu-os e deu-lhes a notícia de que estavam livres. No mesmo momento, saíram da fazenda e desapareceram. (Erthal, Manoel, "Bom Jardim”, p.21.) Por que teriam todos os escravos dessa fazenda resolvido abandoná-la? Trauma devido aos maus-tratos? Vontade de partir para não sei onde. Sem vínculos familiares, sem relações de amizade, partir para onde? No primeiro momento, o sabor da liberdade como no grito da liberta: "Num vô fazê a janta”. Fica a seguinte indagação: Não poderiam esses ex-escravos ter retornado às fazendas de origem e buscado novas relações de trabalho? Não poderiam ter se incorporado ao regime de parceria como meeiros ou a terça, ou trabalhado como "jornaleiros” (por jornada) ou como "camaradas”? Parece-nos que a grande maioria não retornou.
Os distritos e as freguesias da magna Cantagalo ganham autonomia logo no início do regime republicano, surgindo novos municípios. Os fazendeiros dessa região passam a contratar colonos com o fim da escravidão. Sabe-se que cerca de 800 espanhóis se deslocaram direto do porto do Rio de Janeiro para Cantagalo. Algumas fazendas empregaram italianos. O coronel Cornélio de Souza Lima (1849-1941), fazendeiro de São Sebastião do Alto, freguesia que já pertenceu a Cantagalo, inicia o processo de cooptar colonos italianos para aquela região. Foi considerado o "pai” da imigração italiana do Centro-Norte fluminense. E a surge uma nova questão: teria a contratação desses colonos europeus dificultado o reingresso dos ex-escravos às suas fazendas de origem? Ou teria havia outro motivo para que não retornassem? Um interessante artigo publicado no periódico "Nova Pátria”, de Cantagalo, um ano após a abolição da escravidão, traz uma possível explicação para essa última questão. O presente artigo relata que corria o boato em Cantagalo e em diversos pontos do estado de que os libertos, por uma má interpretação do atual estado político, julgavam que iam ser "reescravisados”. Declarava ser conveniente que os senhores proprietários de estabelecimentos agrícolas procurassem, por meios suasórios, convencer os libertos do contrário. O periódico chamava a atenção de que os principais interessados na manutenção da harmonia eram os "exploradores do solo” e portanto, deveriam empregar resolutos esforços no sentido de evitar qualquer perturbação na marcha dos trabalhos agrícolas. Destacava que as instituições republicanas não se coadunam com a escravidão e que a autoridade policial já tomara as providências que o caso exigia. A seguir, transcreve uma circular da Secretaria da Polícia do Estado do Rio de Janeiro, publicada em 27 de novembro de 1889, com o seguinte teor: "Propalando espíritos mal-intencionados que o novo regime de governo pode trazer prejuízo à liberdade dos indivíduos que a adquiriram em virtude da lei 3.353 de 23 de maio do ano próximo passado, recomendo-vos que façais constar por editais afixados em todas as freguesias do vosso termo e por intermédio dos respectivos subdelegados, que os libertos continuarão a gozar dos direitos que lhes foram conferidos pela mesma lei e que a esse respeito nenhuma dúvida existe no animo do governo Provisório da República e deste Estado. Saude e Fraternidade. O chefe de polícia. Godofredo Xavier da Cunha”. (Cantagalo, periódico Nova Pátria, 1º de dezembro de 1889, Ano I, n°: 2, páginas 1 e 2.) Depois da catarse dos primeiros momentos de liberdade, muitos poderiam ter retornado às fazendas em que foram escravos buscando novas relações de trabalho. Mas não o fizeram. Medo do retorno da escravidão devido à mudança do regime de governo? Competição com os colonos europeus? A historiografia há muito analisa as dificuldades de o negro recém-liberto pela abolição se inserir no mercado de trabalho.
Na matéria seguinte apresentaremos algumas recolhas de situações de libertos nos primeiros decênios do século XX, em Nova Friburgo, e procurar localizar o cotidiano desses indivíduos após a abolição da escravidão.
Janaína Botelho é professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora de diversos livros sobre a história de Nova Friburgo. Curta no Facebook a página "História de Nova Friburgo”.

Janaína Botelho
História e Memória
A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.
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