Colunas
Violência policial: um déjà vu em nossa história
quinta-feira, 13 de setembro de 2012
Com a chegada da corte portuguesa ao Brasil em 1808, organiza-se o serviço policial no Rio de Janeiro e cria-se a Intendência Geral da Polícia da Corte e do Estado do Brasil. Desde então, a relação entre a polícia civil e a sociedade brasileira tem sido escrita com tintas vermelhas, entremeada pela violência, truculência e o despotismo dos policiais. No livro “Lei, Cotidiano e Cidade”, o autor Luis Antônio Francisco de Souza, analisando a história da polícia civil no Estado de São Paulo, discorre sobre as acusações que pesavam sobre os delegados e subdelegados na Primeira República. Há inúmeros registros de envolvimento de policiais com o jogo de tavolagem, com a prostituição e tropelias contra os pobres, os operários e os estrangeiros.
A imprensa é a melhor fonte sobre os relatos da violência policial em relação à população. No início do governo republicano, em Nova Friburgo, encontra-se inúmeras matérias nos jornais locais sobre a truculência policial em relação aos friburguenses. No cotidiano da cidade, cenas de violência praticadas por policiais contra transeuntes ilustram o nível de tensão social. Um grupo de rapazes portugueses passava exatamente na hora em que um indivíduo qualquer gritava “morras” para a polícia. Mesmo sem ter nada com a manifestação do indignado cidadão, os rapazes foram “esbordoados” pelos policiais, provocando uma correria de senhoras que gritavam amedrontadas. Conduzidos para a cadeia, um dos rapazes foi novamente vítima do “praça”, como eram denominados os policiais, recebendo sopapos e pontapés. Um curioso ao aproximar-se da cadeia, atraído pela confusão, caiu na esparrela e foi agredido por um praça que lhe aplicou uma imensa dose de “tombos” e “cachações”, relata o jornal.
As vítimas eram geralmente os negros, os estrangeiros e os rapazes jovens, não sendo poupados nem os das famílias mais abastadas da cidade. Os policiais costumavam acutilar os rapazes em praça pública e, segundo o jornal, esta violência mareava os foros de civilização de que gozava Nova Friburgo, fazendo seus habitantes corarem de vergonha diante dos hóspedes que excursionavam durante o verão. Os motivos das prisões eram os mais banais possíveis como não cumprimentar os “praças”, não lhes dar passagem nas calçadas ou por não ter pago um copo de aguardente para a patrulha que fazia ronda: “O que é certo é que ainda se amarram homens livres! O Sr. Dr. chefe de polícia nos poderá informar se haverá direito escrito que autorize semelhante barbaridade no Brasil, no ano de 1894?”, discorria o jornalista de “A Sentinella”. E ainda escrevia o articulista do jornal: “Não se contenta a polícia de já haver aqui espancado jovens estudantes, filhos de distintíssimas famílias, agredindo também um dos mais ilustres progenitores, pessoa altamente colocada e considerada na nossa boa sociedade?(...) Além desses fatos vergonhosos ainda vem a polícia acrescentar novas selvagerias, esbordoando crianças e ameaçando invadir casas de família para agredir também as senhoras? E qual a punição para tão reprovantes atentados? Até aqui, a única tem sido os autores de tais delitos voltarem ao Regimento galardoados com a competente promoção (...) É impossível que estejamos condenados a ver transformar-se Friburgo em lugarejo sem garantias, onde a força pública, invertendo o seu papel, seja promotora de desordens, que as autoridades do lugar não sabem reprimir...” (A Sentinella, “Mais façanhas da polícia”, 1899).
Para agravar ainda mais as tensões sociais, os praças do destacamento policial não se davam ao respeito e viviam constantemente embriagados. O incentivo começava pelas próprias instituições públicas, pois o vinho fazia parte do farnel do regimento policial da cidade, conforme descrito no edital de proposta para fornecimento de víveres. Em março de 1898, todo o destacamento policial estacionado na cidade foi substituído em consequência do comandante e demais praças encontrarem-se frequentemente embriagados, provocando cenas pouco edificantes e não consentâneas como mantenedores da ordem pública. Além disto, eram acusados de tolerância e de conivência com o jogo ilícito, sendo vistos com frequência em alcouces da cidade. Os policiais igualmente não costumavam pagar os aluguéis e serviços prestados, dando o calote na população local. A parda Maria Joaquina da Conceição ao apresentar a conta pelos seus serviços ao carcereiro, segundo o jornal, tomou este a resolução de pagar-lhe com “uma moeda ainda desconhecida na praça: meia dúzia de bofetões”.
A truculência da polícia civil talvez encontre a sua origem na Reforma de 1841, no qual a autoridade policial assume funções judiciárias com a ampliação de seus poderes. Reforçava-se, com isso, o exercício da justiça sustentado pelo mais absoluto “policialismo judiciário”. Mesmo que reforma de 1871 tivesse separado as funções policiais e judiciárias, na prática, essa distinção demorou a se dissociar. Em um estudo recente sobre a percepção social da justiça realizado pelo Ipea, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, a polícia civil foi o segmento da justiça pior avaliado. Em uma escala de 1 a 5, as pessoas entrevistadas deram nota 1,81 para a Polícia Civil. Em mais de dois séculos de sua história, já era o momento dessa instituição rever a sua relação com a sociedade brasileira.
Janaína Botelho é professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora do livro “História e Memória de Nova Friburgo”. historianovafriburgo@gmail.com
![Janaína Botelho Janaína Botelho](https://acervo.avozdaserra.com.br/sites/default/files/styles/foto_do_perfil/public/colunistas/janaina-botelho.jpg?itok=viiurzV-)
Janaína Botelho
História e Memória
A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.
A Direção do Jornal A Voz da Serra não é solidária, não se responsabiliza e nem endossa os conceitos e opiniões emitidas por seus colunistas em seções ou artigos assinados.
Deixe o seu comentário