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Conversa de botequim
No início do século XX, o Rio de Janeiro vivia a sua Belle Époque. A reforma urbana empreendida por Pereira Passos extinguiu as ruas estreitas e o centro da cidade ganhou um espaço elegante, a Av. Central, hoje Av. Rio Branco, similar a um boulevard francês, com prédios em estilo neoclássico. Novas indústrias se instalam nos subúrbios da cidade originando um novo espaço de sociabilidade: o botequim. Esse estabelecimento surgiu no Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX, oriundo das boticas e dos armazéns. Era frequentado pela emergente classe operária das indústrias que se estabeleciam na capital da República passando a intermediar mais amiúde o caminho entre o lar e o trabalho. O botequim ganhou, por conseguinte, a alcunha de “pé-sujo”, provavelmente porque era frequentado pelas classes populares. Era no botequim que o operário amenizava a rígida hierarquia das fábricas e o papel de provedor com o seu minguado salário. No entanto, o governo reprimia esse espaço de sociabilidade, criminalizando-o, e rotulando-o como lugar de ócio e de malandragem. Mas os botequins logo ganharam adeptos das camadas médias da população, a exemplo de Noel Rosa. Surgia a figura do boêmio. Assim, operários, ociosos e alcoólatras passaram a compartilhar esse espaço com sambistas, poetas e jornalistas. O botequim ganhou vernáculo próprio: “Desce mais uma”, “Mais uma rodada”, além do cardápio clássico que consistia em ovo colorido, jiló, linguiça e torresmo.
Podemos buscar algumas referências desse espaço de sociabilidade em Nova Friburgo. Na cidade serrana, em 1893, havia a Cervejaria Beauclair, situada à margem do Rio Santo Antônio, num sítio aprazível logo na entrada da cidade, no estilo Biergarten. Influência dos imigrantes alemães, as denominadas Biergärten eram espaços de lazer situados em áreas arborizadas com jardins e normalmente próximos a um rio, onde se espalhavam mesas e bancos de madeira. Nestes locais, geralmente cada um levava sua própria refeição e consumia a cerveja vendida no local. As Biergärten conservam a mesma tradição até hoje na Alemanha. Em meados do século XX, muitos friburguenses antes de ir para a Casa das “Moças-Damas” de Dona Sofia, tomavam um gole de cachaça no bar do “Justino”, na Alberto Braune, na esquina do pecado, ou no bar “Grito de Mocidade”. E quem não se recorda do bar do “Seu Mário”? Imigrante português que veio para Nova Friburgo em 1951, foi ele quem trouxe o chope para a cidade. Bolinhos de bacalhau, sorvetes de abacaxi, pistache, ameixa e creme holandês, tudo de fabricação caseira, os botequins ganhavam ares mais respeitáveis. O irmão do Sr. Mário, Justino (o mesmo proprietário do bar citado anteriormente), foi o primeiro dono do bar “América”, que existe até hoje, localizado na Rua Monte Líbano. Havia ainda o tradicional bar do “Edoardo”, estabelecido na Rua Fernando Bizzotto, frequentado pelos executivos das indústrias alemães da cidade.
Atualmente, os botequins passaram a ser valorizados pelos chefs culinários e até a cachaça, bebida das classes populares, ganhou adeptos entre as classes média e alta, surgindo até “sommeliers” da bebida. Na cidade do Rio de Janeiro as empresas familiares dos velhos botequins vêm sendo substituídas por sócios investidores que apostam no ramo como um business, com menu e “carta de cervejas”, em meio à onda de valorização do botequim. A cada ano, surgem redes e bares modernos que não têm similaridade com os botequins originais, mas buscam as representações e identidade desse tipo de estabelecimento.
Analisando em Nova Friburgo a clivagem entre o tradicional e o novo, podemos estabelecer uma comparação entre o bar “América” e o bar do “Julinho”, localizado na Rua Luiz Spinelli. No primeiro, o Bar América, a busca por elementos simbólicos do velho botequim. Porém, esse estabelecimento não passa de um rendez-vous, onde as pessoas se dirigem para ver ou serem vistas. Já no bar do “Julinho”, identificado com os velhos botequins, a clientela procura a cerveja bem gelada, o papo rápido sobre o futebol, pequenos fragmentos de conversas. No bar do “Julinho”, assim como em outros similares espalhados pela cidade, o espaço físico diminuto, típico dos tradicionais botequins, privilegia a sociabilidade dos fregueses e daí a familiaridade desses estabelecimentos. E para fechar a matéria nada como lembrar de Noel Rosa, que imortalizou na música esse espaço de sociabilidade que mais se aproxima da identidade brasileira: a camaradagem fácil na conversa de botequim.
Janaína Botelho é professora de História do Direito na Universidade Candido Mendes e autora do livro “História e Memória de Nova Friburgo”. historianovafriburgo@gmail.com
Janaína Botelho
História e Memória
A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.
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