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Escravidão e cotidiano - 17 de novembro 2011
A pesquisa sobre a escravidão em Nova Friburgo é algo embrionário. A quase inexistência de fontes dificulta o trabalho dos pesquisadores. Diferentemente do escravo norte-americano que foi instruído a ler, os escravos foram proibidos de serem alfabetizados no Brasil, o que torna difícil ainda mais a existência das fontes, não nos deixando as impressões sobre o seu infortúnio. Rui Barbosa, objetivando evitar indenizações por parte do Governo Republicano aos proprietários de escravos, mandou destruir muitos registros e documentos sobre a escravidão, apagando da memória do país importante acervo. Normalmente, os historiadores recorrem a relatos de viajantes que passaram pelo país, geralmente a negócios, como fonte de pesquisa sobre a escravidão.
Nesta matéria, objetivamos reconstituir tão somente uma pequena parte do cotidiano dos escravos fora de sua atividade laboral. Já sabemos de suas agruras no eito sob o chicote implacável de feitores, a promiscuidade das senzalas e as sevícias sofridas. Utilizaremos como fonte, as observações de um colono suíço, Joseph Hecht, traduzidas do alemão antigo por Armindo Müller.
Os escravos eram objeto de uma série de restrições em Nova Friburgo. No cotidiano da vila, os “pretos”, como eram chamados, circulavam pelas ruas fazendo serviços, vendendo produtos e buscando água. Já os pretos do libambo, escravos fugitivos sob a custódia da Câmara, eram vistos limpando as praças, as valas e trabalhando nas pequenas construções públicas. Porém, fora de suas ocupações de trabalho, os escravos não eram tolerados circulando pelas ruas da vila. Um juiz de paz exigiu que a Câmara fizesse postura a fim de reprimir os contínuos “abusos” de escravos que continuadamente vagavam pelas ruas. Há uma reclamação na Câmara, de que na Praça do Suspiro não se podia suportar o cheiro de urina dos “pretos” que ali se concentravam. Depois das dez horas da noite, não se tolerava que escravos circulassem pelas ruas da vila.
O colono Hecht observando o comportamento dos escravos em Nova Friburgo, fez interessantes anotações. Os escravos, cuja refeição era cozinhada à parte, se alimentavam de arroz ou legumes e lascas de carne de porco. Uma grande panela era colocada sobre o chão e os escravos, geralmente seminus, sentavam-se em volta, cada qual com sua cuia e se serviam. Farinha de mandioca e água complementava a alimentação. Polvilhavam farinha sobre a refeição, misturando todo o conteúdo da cuia com os dedos até fazer uma massa espessa. A seguir, faziam pelotas redondas que seguravam com três dedos, simulando um garfo e jogavam com habilidade as porções na boca. Segundo Hecht, “era um espetáculo realmente curioso de ver, tantas pessoas negras sentadas juntas em torno de uma panela preta. Os negros ficavam muito inibidos com a nossa presença e jogavam as apetitosas pelotas ainda mais rapidamente na boca. Sem dúvida, nós precisaríamos praticar um longo tempo até atingir tão elevado grau de perfeição”. Debret também observou essas “pelotas” que os escravos faziam e que Hecht descreveu, composta de farinha de mandioca e misturada com suco de laranja ou banana. Em Nova Friburgo, o angu e o bacalhau salgado eram igualmente a base da alimentação de escravos e das classes populares até o fim do século XIX.
Nos raros momentos de folga, como domingo e dia santo, música, dança e cachaça no terreiro. A descrição que Hecht faz dos artefatos de música utilizados pelos escravos é o de um arco feito de cordas estiradas, preso ao corpo sobre uma cabaça e tocado por meio de uma vareta de metal com que se golpeiam as cordas do arco. Ao tocar tal instrumento um negro entoa uma cantiga e os outros escravos iniciavam uma dança. As escravas ficavam apartadas dançando em lugar separado. Hecht assim descreveu essa dança: “A maneira de dançarem é muito cômica. Eles correm uns contra os outros (será que devo contar isso?) até esbarrarem com força as barrigas, pulam para trás e giram bastante tempo num espaço pequeno, como se fossem um grande prato. Por seu grande entusiasmo, poder-se-ia inferir que a música é excelente, mas é difícil imaginar algo mais pobre. A música continua sempre no mesmo ritmo e o tocador canta ou resmunga junto com ela. Se um dos que dança se cansa, um outro salta depressa para o seu lugar e faz os mesmos movimentos”. A dança a que se refere o colono suíço provavelmente é o lundu, muito dançado pelos escravos. O decoro de Hecht quanto à dança, não sabendo se contava ou não, deve-se ao fato de no lundu, homens e mulheres darem umbigada, o que para os europeus parecia não ser algo decente. Depois da dança, os escravos jogavam uma espécie de entrudo. Cada um tenta de surpresa lançar lama sobre o outro ou então arremessar o outro numa poça de lama. Gingavam com tamanha agilidade, a ponto de não serem reconhecidos, surpreendeu-se Hecht. Aquele que foi arremessado se recupera, corre atrás do outro e procura vingar-se. Essas brincadeiras se estendiam noite adentro, até que todos, “se atirem cansados e ensopados em seus leitos miseráveis”. Em algumas entrevistas realizadas com antigos moradores, que tem as histórias de seus ancestrais, percebe-se que a inserção do afro-descendente em Nova Friburgo foi prejudicada em razão da hegemonia no seio da população de imigrantes europeus. Raramente um afro-descendente foi admitido nas nascentes indústrias que se implantaram no município. No início XX, eram vistos fornecendo legumes e verduras de suas pequenas roças, confeccionando balaios de taquara, trabalhando como vendedores ambulantes e empregando suas filhas nos serviços domésticos. E paulatinamente, os afro-descendentes vêm conquistando o seu espaço na sociedade friburguense.
Janaína Botelho
História e Memória
A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.
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