Por que não morremos em casa? - 3 de novembro 2011

sexta-feira, 06 de abril de 2012

Os romanos, no início de sua civilização, tinham entre os familiares mortos, os seus ancestrais, seus primeiros deuses. Esse culto aos mortos foi encontrado entre os helenos, os latinos, os sabinos e os etruscos. Diante do túmulo havia um altar para os sacrifícios. Frequentemente levavam ao túmulo de seus ancestrais leite, vinho, óleos, incenso, perfumes e imolavam animais em oferenda, num banquete fúnebre. O túmulo romano tinha a sua culina, espécie de cozinha destinada às oferendas ao morto. Se deixassem de oferecer a refeição fúnebre aos mortos, sairiam esses dos túmulos e, como sombras errantes, seriam ouvidos gemer na noite silenciosa. Repreendiam igualmente os vivos pela sua negligência ímpia, procuravam puni-los, enviando-lhes doenças ou ameaçando-os com a esterilidade do solo. Enfim, não davam aos vivos descanso até que os repastos fúnebres lhes fossem oferecidos. O sacrifício, a oferta de alimentos e a libação faziam-nos voltar ao túmulo e garantiam-lhes o repouso e os atributos divinos. O homem estaria então em paz com os seus mortos. Essa religião dos mortos parece ter sido a mais antiga entre os homens e a origem do sentimento religioso. A morte foi o seu primeiro mistério. A Lei das XII Tábuas determinava que os mortos fossem enterrados fora dos limites da cidade e estabelecia o modo de vestir o cadáver. Disciplinava ainda o comportamento das pessoas nos funerais, especialmente das mulheres: “Que as mulheres não arranhem as faces nem soltem gritos imoderados”. Cumpre esclarecer, que muito antes os egípcios foram os precursores da religião funerária e as pirâmides são o que mais simbolizam a sua obsessão pela morte. Os gregos e os romanos promoviam os jogos fúnebres em homenagem a um falecido ilustre. Tanto as olimpíadas gregas como as lutas entre os gladiadores romanos têm a sua origem nesses ritos fúnebres para tecer preito aos de cujus honoráveis. Na Idade Média, acreditava-se que, por serem as mulheres que davam “a luz”, eram elas igualmente encarregadas do preparo do defunto—quem dá a vida também se encarrega da morte.

Analisemos alguns comportamentos dos friburguenses diante da morte, no início do século XX. Outrora, quando “falecia da vida presente” um friburguense, o corpo era velado na residência do falecido. A sala era transformada em “câmara ardente”. No ataúde, o corpo repousava rodeado por círios tendo ainda à cabeça, um crucifixo. As paredes da câmara ardente eram forradas de preto, com uma profusão de coroas mortuárias e velas que ardiam ao redor do esquife. Durante o dia, a residência era visitada pelos amigos, sendo praxe ainda enviar à família cartas, cartões e telegramas. Nas ruas, a população aguardava a saída do féretro, no mais sincero acatamento. Os homens tiravam o chapéu em sinal de respeito. O préstito fúnebre que percorria a cidade dava certa familiaridade aos friburguenses com a morte, incorporando-a ao seu cotidiano. Ao fim da tarde, geralmente às cinco horas, partia o cortejo fúnebre para a Igreja Matriz, onde, depois da cerimônia da encomendação, seguia para o cemitério. Da igreja até o cemitério, tocava uma banda de música sentida marcha fúnebre, e igualmente ao baixar o caixão à sepultura, após a oração de estilo. Os necrólogos faziam discursos fúnebres antes de baixar o caixão à sepultura. Os jornais transcreviam os nomes de todos que enviavam flores e acompanharam o enterro, no caso do falecimento de um membro da elite.

É curioso que na primeira metade do século XX, por ocasião do aniversário da cidade, os friburguenses peregrinavam aos túmulos dos primeiros colonos que habitaram a vila, um costume perdido ao longo dos anos. No passado as mães acreditavam que as crianças mortas viravam anjos e isso as reconfortava. Outrora no cemitério de Nova Friburgo havia uma área reservada apenas para as crianças, a “Quadra dos Anjos”. Na tragédia ocorrida em Nova Friburgo em 12 de janeiro, nos emocionou um homem simples do povo que perdera sua filha pela queda de um barranco. Ele disse: “Que Deus a tenha em bom lugar”. De forma inconsciente, aquele homem se culpava por não ter dado a sua filhinha um lugar seguro, um bom lugar para viver. O conforto de que Deus levou sua filha para a sua glória.

Outrora nascia-se e morria-se em casa. Transferimos o velório da sala, onde viveu o morto, como se fazia outrora, para os imundos necrotérios. Atualmente, temos a prática de retirar o doente desenganado do convívio familiar para sepultá-lo antecipadamente em estabelecimentos de saúde, a morte “higiênica e técnica, mas solitária e desumana”, conforme José de Souza Martins. No jargão médico se diz “paciente fora das possibilidades terapêuticas” ou ainda “vai a óbito”. Quantas vezes presenciamos familiares aguardar a morte de um parente desenganado internado em um hospital? Não se morre mais em casa, no meio dos seus: morre-se em um leito hospitalar e sozinho. Pergunta-se? Por que não deixar o doente desenganado morrer em casa? São essas mudanças de comportamento na sociedade que faz com que alguns historiadores se debrucem sob esse objeto, a morte, para escrever a história das mentalidades coletivas.

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Janaína Botelho

Janaína Botelho

História e Memória

A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.

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