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Minha vida mágica
O legado da escravidão e os conquistadores de capa preta
Parte II
Na semana passada apresentamos Yolanda Brugnolo Lívio Barilari Bizi Cavalieri d´Oro, descendente de imigrantes italianos que chegaram a Friburgo no final do século XIX. Suas memórias são da década de 20, do século XX, e nos mostram um pouco de Friburgo naquela época. Hoje tratar-se-á das memórias de Yolanda sobre dois temas: a escravidão e a moral da época. Pouco mais de quarenta anos depois de extinta a escravidão (1888), suas memórias nos mostram como ficou a situação dos ex-escravos e seus descendentes em Nova Friburgo. Sua infância é povoada de empregadas e crianças negras em sua residência, todos lembrados com muito carinho a exemplo dos ‘pretinhos’ Lidia, Cidália e Simplício, tão difíceis de esquecer. Numa convivência doméstica e amistosa, nos remete a obra de Gilberto Freire, Casa Grande e Senzala, das mães pretas e negrinhos convivendo harmoniosamente com os senhores da casa.
Yolanda tinha quatro anos quando Felizmina veio trabalhar em sua casa. Era uma “crioula gorda”, de uns quinze anos, inteligente e muito tímida. Sua avó e sua mãe já haviam sido empregadas de sua casa, e a tinham trazido para que a mãe de Yolanda a ensinasse a trabalhar. Felizmina ficou na família por 27 anos. “Ajudou a nos criar, participando de nossa vida mais como amiga do que como empregada”, recorda-se Yolanda. Já sua avó Anita, racista, segundo ela, reclamava que a cozinha da casa de Yolanda parecia uma senzala, sempre cheia de negros. “E era verdade. Mamãe acolhia-os, ajudava-os, ensinava-os a ler, a viver. Também, nunca precisou fazer trabalhos pesados, sempre havia alguma negra adorando trabalhar para ela, verdureiros [negros] perguntando se D. Carmen queria “rapoio”(repolho), vizinhos mais pobres ajudando nas tachadas de goiabada ou no fabricação do polvilho “(...)Era Mamãe quem escolhia os feitios dos vestidos natalinos das pretinhas e as ajudava nas tarefas escolares”. Yolanda se recorda dos roletes de sorvete, ancestral do picolé, apregoados por moleques negrinhos com suas caixas de madeira com gelo, empregados de algumas senhoras da cidade. A avó Anita tinha uma empregada que a acompanhava há anos de nome D. Fortunada. Era uma velhinha preta, nascida escrava, que “executava suas ordens sem pensar em discutir”.
Uma interessante herança da escravidão era um castigo ao qual denominavam à época de pelourinho. Quando se fazia alguma “arte”, havia uma cadeira especial para o castigo, o pelourinho, que ficava disposta no quarto. A criança ficava lá até que o castigo cessasse. No entanto, não havia violência física contra as crianças, diferente da prática do pelourinho que castigava os escravos com açoites e outros tipos de sevícias.
No tocante à moral da época, como o pai de Yolanda era caixeiro-viajante e ficava muitos dias fora de casa, sua mamãe achava que não deveria sair, pois poderia “ficar falada”. Certo dia, uma garota da vizinhança disse a Yolanda que era sua prima, filha de seu tio. Indignada, chamou-a de mentirosa, pois seu tio era casado, tinha família e morava no Rio de Janeiro. Quando contou à sua mãe o ocorrido, ela lhe disse para não tocar mais naquele assunto. Adultério e situações que chocavam a moral da época eram tratados nas alcovas. No ouvir dizer, Yolanda recorda-se das histórias dos “conquistadores de capa preta”, figuras importantes da sociedade, segundo ela, que saíam à noite, “embuçados como dominós”, para visitar suas amantes. No início do século XX, muitos casamentos, e me refiro aos das classes abastadas, ainda eram realizados na base das convenções sociais. O casamento por amor, prevalecendo a vontade dos noivos em escolher seus parceiros, ainda dava seus primeiros passos, principalmente entre a elite, onde os jovens eram ainda objeto de “arranjos” matrimoniais entre seus familiares. Daí ser comum que muitos homens buscassem parceiras fora do casamento, já que suas consortes não foram objeto de sua escolha. Em relação ao homem que deixasse a amante e vivesse só para a família, dizia-se que ele “calçou os chinelos”. Na próxima semana o cotidiano de uma típica família de italianos em Friburgo.
Janaína Botelho é autora do livro O Cotidiano
de Nova Friburgo no Final do Século XIX. Para ler
as matérias anteriores acesse historiadefriburgo.blogspot.com
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Janaína Botelho
História e Memória
A professora e autora Janaína Botelho assina História e Memória de Nova Friburgo, todas as quintas, onde divide com os leitores de AVS os resultados de sua intensa pesquisa sobre os costumes e comportamentos da cidade e região desde o século XVIII.
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