Literatura - Quando nascemos, ninguém diz a verdade: não é nada fácil ser humano

sexta-feira, 02 de janeiro de 2015
por Jornal A Voz da Serra

Gustavo Melo

Não recebemos instruções. Precisamos aprender tudo na base da surpresa e do improviso. Recebemos uma quantidade absurda de conhecimentos pré-existentes, formados pela lenta sedimentação das ideias de todos aqueles que nos precederam. Somos engrenagens de uma longa tradição de teorias, livros, ideias, sonhos e, ao mesmo tempo em que precisamos nos inteirar do ponto de evolução em que se encontra a Humanidade, temos que trilhar nossos próprios caminhos no meio da escuridão, sabendo que cada escolha implicará na morte de uma possibilidade. Vivemos à sombra do passado, o nosso e o alheio. Especulamos o que será do futuro, ainda que o presente não canse de nos fustigar com as suas pequenezas.

Sem esperar e sem estarmos preparados, mal e mal conseguimos andar e já entramos em uma série de competições que forjarão o nosso caráter. O tempo inteiro precisamos provar força e inteligência. Não podemos relaxar a guarda nunca. Não temos um minuto sequer de sossego; mesmo nos períodos calmos, existem decisões a serem tomadas, caminhos a serem escolhidos, dúvidas atrozes que não calam durante as noites. Quem ficar para trás, será atropelado por este caminhão que chamam de vida e se tornará uma casca sem sentido a vagar pelo mundo, esperando o próprio desaparecimento, fantasma involuntário.

Nenhum de nós escolheu ser humano. A melhor alegoria capaz de nos representar é Atlas, o titã que segura o mundo sobre os ombros. Cada pessoa carrega a Humanidade nas costas, e é um peso quase insuportável.

Subestimamos a nossa própria capacidade de sentir. Somos bombas sentimentais trafegando a esmo por aí, prestes a explodir a qualquer instante. Ninguém sabe qual será a fagulha que vai detonar a lágrima, a palavra que vai antecipar o jorro de raiva, o sorriso que vai incandescer outra pessoa. Ser humano é viver confinado entre reações químicas, ter o instinto como norma e sofrer as descargas de dezenas de sentimentos a cada mínimo gesto.

Não é à toa que, quando tentaram ensinar um robô a amar, ele enlouqueceu ( http://tecnologia.terra.com.br/robos/robo-programado-para-amar-tem-quotataque- obsessivoquot,2208ea1f807ea310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html ). O amor é uma prisão e um alívio, e somente nós temos a carga evolutiva capaz de resistir a ele sem enlouquecermos. É outro peso que carregamos sobre os ombros. Não podemos delegar a ninguém aquilo que sentimos; é um deserto que cada pessoa só consegue ultrapassar sozinha. Mas é necessário elogiar a delicada urdidura do corpo, capaz de resistir a centenas de explosões de sentimentos e manter a sua coesão sem que percamos junto a sanidade.

Ser humano é um castigo. Camus dizia que a única escolha verdadeira que temos na vida é se devemos ou não cometer suicídio, que a grande questão humana é saber qual o motivo de viver. Talvez seja prudente não pensarmos muito sobre isto, pois é mergulhar em uma espiral sombria de dúvidas da qual dificilmente conseguiremos sair. Um ser que acorda hoje e descobre que é humano não conseguiria suportar tamanho desespero, e mesmo nisto existe sabedoria, pois nascemos indefesos justamente para não ter este tipo de tentação. Se não fosse assim, seríamos como o robô suicida ( http://portuguese.ruvr.ru/news/2013_11_13/Na-Austria-foi-registrado-o-primeiro-caso-de-suic-dio-de-rob-4120/?bottom=news ): quando percebeu a Humanidade se infiltrando entre as suas válvulas e se insinuando entre as suas ligas metálicas, não conseguiu viver com tal possibilidade. Melhor uma morte digna do que uma existência humanamente comum — não era este o dilema de Aquiles?

Se as pessoas parassem para pensar na extrema dificuldade que é ser humano todos os dias, seriam mais compassivas entre si. Não é fácil manter um conjunto de valores éticos e morais em um mundo que se decompõe a olhos vistos, assim como não é simples segurar sentimentos à flor da pele. Passamos toda a vida treinando, e continuamos tão amadores quanto éramos no início.

Não acredito em perdão genuíno; sempre fica um travo amargo para trás, algo que não conseguimos ultrapassar. No entanto, acredito que seríamos pessoas melhores se soubéssemos que, se para nós ser humano é difícil, para o outro também deve ser. Não é nada fácil caminhar por este vasto planeta aguentando o peso da Humanidade sobre os ombros, mas, se serve de algum consolo, estamos todos juntos nesta tarefa solitária.

 

Sobre o autor

Gustavo Melo Czekster nasceu em Porto Alegre, em 1976. Cursou a oficina de criação literária de Luiz Antonio de Assis Brasil, em 2000, e a de Léa Masina, em 2001. É advogado e mestre em Literatura Comparada pela UFRGS. 


Vale a dica:

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