Texto: Ana Borges / Foto: Tiago Guimarães
Geraldo Motta (foto), cineasta pernambucano, mestre em Filosofia, em seu primeiro longa-metragem "O Risco: Lucio Costa e a Utopia Moderna” (com cenas filmadas do Park Hotel, em Nova Friburgo) conquistou o Prêmio Especial do Júri no Festival de Gramado, em 2003. Foi, também, escolhido para ser um dos representantes do país no Ano do Brasil, na França. Em seguida, Geraldo mergulhou num projeto que levaria dez anos para vê-lo nos cinemas: o filme O Senhor do Labirinto, seu primeiro longa de ficção. Em 2010 foi agraciado com o prêmio de melhor filme pelo júri popular no Festival do Rio, e desde então, vem sendo convidado para participar de festivais como o de Gramado, em 2011, na categoria hors concours na Mostra Panorama, entre outros. Em março de 2015, vai participar do Cine Brasil, evento a ser realizado na Alemanha. Mas exibição aberta para o público, só aconteceu a partir de 11 de dezembro de 2014. É sobre esta empreitada, que exigiu coragem e persistência de toda a equipe para filmar a vida de Arthur Bispo do Rosário, e o envolvimento de Geraldo Motta, como indivíduo, com essa história, que conversamos com o diretor.
Light – Como você ficou sabendo da existência do Bispo e porque resolveu filmar a história dele?
Geraldo Motta – Tudo começou com o livro "Arthur Bispo do Rosário – O senhor do labirinto”, da Luciana Hidalgo (jornalista), que na época já era uma obra consagrada pela crítica e público, e conquistado o prestigiado prêmio Jabuti, em 1997. Em 2003, após assistir ao meu documentário sobre Lúcio Costa, ela me convidou para filmar a história do Bispo, baseado no livro dela. Li e me envolvi. Agora, dificilmente teria conseguido contar essa história sem a colaboração da Luciana na adaptação. O filme não existiria sem a parceria dela.
Antes disso, o que você sabia sobre o Bispo?
Na verdade, em 1982, o psicanalista e fotógrafo Hugo Denizart estava fazendo uma documentação fotográfica para o Ministério da Saúde sobre manicômios. Mas antes disso, o Hugo já desenvolvia um trabalho para dar visibilidade para segmentos da sociedade que eram marginalizados, como prostitutas, travestis, loucos etc. Em 1975, Hugo fez um grande ensaio fotográfico sobre a Cidade de Deus, que recebeu muitos prêmios e foi uma das fontes para o filme do Henrique Meirelles. Mas foi através do trabalho do Hugo nos manicômios, de sua descoberta do Bispo, interno do Juliano Moreira (manicômio) sobre quem fez o filme "O Prisioneiro da Passagem”, que eu tomei conhecimento da existência desse artista.
Quer dizer, o filme (do Hugo) e o livro (da Luciana) foram as suas duas fontes de inspiração.
Realmente, ambos foram a base do roteiro que nós dois fizemos, nossas principais fontes de pesquisa. Até então, eu conhecia o Bispo e sua obra, como qualquer pessoa medianamente informada. Eu não tive nenhum contato com ele e o pouco que sabia era o que via na imprensa, em reportagens de televisão, no filme do Denizart, e depois no livro da Luciana.
Vocês conseguiram financiamento para começar a trabalhar?
Pois é, precisava de grana para começar a trabalhar no roteiro. Por sorte, logo depois de termos decidido fazer o filme, o MinC abriu um edital com prêmio em dinheiro exatamente para desenvolvimento de roteiros. Dez projetos foram selecionados e o nosso ficou em 1º lugar. Começamos assim, sem saber o quão longa seria a caminhada que teríamos pela frente. Tivemos muita dificuldade de captação por causa do tema, a loucura.
Que levou quantos anos até uma primeira exibição?
Dez anos. Mas, nesse ínterim, participamos de festivais, recebemos prêmios nos últimos quatro anos, mas não tínhamos dinheiro para a distribuição. É muito difícil fazer cinema no Brasil, ainda mais sobre um assunto como esse. É uma luta insana (risos). Bom... é disso que estamos falando mesmo, né?
E a crítica especializada, como tem se manifestado?
Olha, teve um crítico (de prestigiada revista semanal), que após 10 minutos de exibição se levantou e foi saindo. Eu fui atrás e perguntei qual o problema, e ele disse que não estava entendendo nada, que o "cara não dizia coisa com coisa”. Então, tive que lembrá-lo que se tratava de um filme sobre um artista esquizofrênico, internado num manicômio há 50 anos etc e tal, e que, portanto, o tal do entendimento que ele buscava não era o cerne da questão. Ora, pensei, se ele queria assistir a um filme com diálogos lineares, tipo ping-pong, realmente ele estava na sala errada. Depois liguei para a tal revista, relatei o fato para alguém da editoria, e até agora a revista não fez crítica escrita, mas deu um jeito de colocar um "zero estrelas”. Ora, o cara não assistiu ao filme, ia escrever o quê? Mas...
E dos críticos em geral, os que assistiram de fato, o que têm escrito?
A grande maioria, é favorável, elogia. Mas, alguns deles não compreendem as sutilezas, o que está por trás de certas cenas e diálogos, e arrasam o filme. Eles não entendem, Ana... (Rio do jeito meio desesperado e ao mesmo tempo cômico do Geraldo ao falar isso e caímos na risada). Mas, ainda bem que tem aquelas críticas que são um sopro de vida, como por exemplo, a do Rodrigo Fonseca (O Globo) que é um crítico exigente. Ele já dá o recado no título de sua avaliação: "Arte bordada ponto a ponto” (publicada no dia 10 de dezembro e transcrita por AVS na edição de quarta-feira, 17). Uma crítica que não me agradou apenas porque elogiou, mas porque apontou os diferenciais que o filme traz em relação às diversas cinebiografias que têm sido produzidas, ultimamente, "nas quais o diálogo tem mais relevância do que a força da imagem”. No nosso filme, fizemos o contrário, afinal é sobre a obra do Bispo, e no caso, aqui cabe o clichê, a imagem vale mais que mil palavras. Talvez por isso o moço lá daquela revista não tenha entendido... (risos).
Como foi convidar o Egberto Gismonti para fazer a trilha sonora?
Sou fá dele desde garoto. Criei coragem e liguei para ele, me apresentando como cineasta e que estava fazendo a minha primeira ficção. Pedi que ele visse o copião (primeira montagem) e me dissesse o que achava. Ele topou. Dia seguinte ele me ligou e falou que queria fazer a música. Assim, sem mais nem menos. Eu fiquei meio embasbacado, porque na verdade, eu mandei o filme na esperança de ouvir isso dele, mas foi tão rápido que me pegou de surpresa. Então, foi aí que tive que dizer que não tinha como pagar. E ele: "Eu não tô falando de dinheiro, Geraldo, tô falando que quero fazer a trilha sonora do seu filme”. Daí ele entrou como produtor associado. E fez essa música maravilhosa, uma perfeição.
E por que Flávio Bauraqui para representar o Bispo?
Isso foi engraçado. Eu não tinha ideia de quem faria o papel. Andava assistindo peças de teatro e filmes, e numa sequência curiosa, o Flávio (Bauraqui) estava em pelo menos umas três produções. A figura dele, o talento, a expressão, tudo nele foi me conquistando. Convidei, ele aceitou e foi fundo no personagem. Ele gravou num iPod o filme do Hugo (Denizart) e ficava ouvindo o som da voz do Bispo, o jeito como ele falava, as coisas que ele dizia. Olha, coisa de louco mesmo. O Flávio incorporou de tal modo que... parecia que ele sentia o que o Bispo sentia, descobriu quem era aquela pessoa. Um trabalho incrível de ator. O Flávio dizia que já que ele não ouvia anjos, resolveu ouvir o Bispo. E pelo resultado, ouviu mesmo.
Já que houve tanta dificuldade de captação, que tipo de ajuda você conseguiu?
Além da equipe e elenco do filme, consegui apoio do governo e do povo do Sergipe (Bispo era sergipano): artesãos, escultores, bordadeiras, artistas de vários setores da cultura, presidiários, poder público de maneira geral, até o governador Marcelo Déda (falecido em dezembro de 2013) se envolveu pessoalmente, enfim, consegui fazer esse filme com apenas um milhão de reais, quando o comum, na média, é gastar 10, 12, 15 milhões.
Como você resumiria a história que contou nesse filme?
Essa história configura um caso de certa forma extraordinária, porque fala da vida de um doente mental. Mas o que ele faz e a gente mostra no filme é a sua imensa capacidade de superação. E não se trata de superar uma fase, um transtorno, uma doença, um período. Mas se superar, dia a dia, por toda uma existência. O Bispo tinha que lidar com algo que é inerente à condição humana, que é a precariedade. E com a tarefa de superar-se e superar essa precariedade. É uma luta insana, que ele combateu bravamente, se impondo e sem jamais abrir mão do que acreditava. O Bispo viveu, até o fim de sua vida, em longos 80 anos, com dignidade, apesar da doença. Ele fez da sua vida a sua obra, e de sua obra a sua vida.
O SENHOR DO LABIRINTO
Ficção, 80 min.
Direção: Geraldo Motta
Codireção: Gisella de Mello
Roteiro: Geraldo Motta, Luciana Hidalgo
Elenco: Flávio Bauraqui, Irandhir Santos, Maria Flor, Odilon Esteves, Eriberto Leão, Luiz Carlos Reis, Rodrigo Riszla, Edlo Mendes, José Carlos Ngão, Andrea Villela, Diane Velôso
Fotografia: Kátia Coelho
Montagem: Karen Akerman
Direção de Arte: Sérgio Silveira
Figurino: Simone Aquino
Trilha Sonora: Egberto Gismonti
Som: Toninho Muricy
Produtora: Tibet Filme (Elisa Tolomelli, Monica Faria, Luiz Otero)
Distribuidora: Eh! Filmes
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