LITERATURA - A eterna novidade do mundo

sexta-feira, 05 de setembro de 2014
por Jornal A Voz da Serra

Robério José Canto

No livro "Campo Geral”, de Guimarães Rosa, Miguilim, menino que vive num lugar chamado Mutum, tem um problema de vista. Mas, como nunca viu o mundo de outra forma, acredita que tudo é opaco, sem nitidez, sombreado. Até que por lá passa um viajante que faz Miguilim experimentar um par de óculos. Quando o menino coloca os óculos, espanta-se ao ver, pela primeira vez, o mundo limpo, nítido, claro. O Mutum era bonito, e ele não sabia.

Em todo tempo e lugar, a literatura tem sido esse par de óculos na vida de muitas pessoas. Eu costumo dizer que a leitura de obras literárias é a possibilidade de vivermos todas as aventuras sem corrermos nenhum risco. Enquanto mergulha na leitura, o leitor pode se tornar um jagunço valente, como Riobaldo, de Grandes Sertões – Veredas, um defunto cínico, como Brás Cubas, de Memórias Póstumas, uma prostituta quase santa, como Lucíola, de José de Alencar, uma cadela, como Baleia, de Vidas Secas, ou o Burrinho Pedrês, de Guimarães Rosa.

Ao fechar o livro, o leitor volta a ser ele mesmo, mas não o mesmo, porque agora enriquecido pela experiência daquela leitura. Pois, queiramos ou não, tenhamos ou não consciência disso, o que lemos se entranha em nós, agora faz parte do que somos. Num livro de contos, Gorki mostra a vida dos pobres da Rússia, da gente miserável que vivia à margem da sociedade czarista. São pessoas tão sofridas que não há como não se emocionar com elas. E essa leitura nos faz perceber que, mesmo a mais miserável das criaturas tem sonhos, desejos, alegrias e tristezas, e isso muda o sentimento que experimentamos por tais pessoas, quando as vemos dormindo nas calçadas de nossa cidade. 

Seja nos 8.816 versos de Os Lusíadas, seja num microconto de duas linhas, a literatura tem sempre alguma coisa muito velha e sempre nova a nos dizer sobre nossos sentimentos, nossas emoções, nossas verdades e nossas mentiras. Porque, como disse Rubem Alves, "a leitura nos leva para mundos que nunca existiram nem existirão, por espaços longínquos que nunca visitaremos. É desse mundo diferente, estranho ao nosso, que passamos a ver o mundo em que vivemos de outra forma”.

A literatura não faz ninguém ficar mais sensível, mais inteligente, mais generoso, ou mais qualquer coisa. Mas, com certeza, ela dispara nas pessoas o que elas têm de mais profundo. Quem lê descobre seus semelhantes, descobre o mundo e, o mais importante, descobre a si mesmo: as grandezas e misérias da natureza humana.

Quem tem o hábito de ler está sempre se refazendo e refazendo sua visão da realidade. O que me faz lembrar de Fernando Pessoa, falando pela voz de Alberto Caieiro:


O meu olhar é nítido como um girassol.

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de vez em quando olhando para trás...

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem...

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras...

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do mundo.


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