LITERATURA - Entre Deus e o Diabo: a contradição humana

Atualidade dos temas e estratégias narrativas mantêm atração à obra machadiana
sexta-feira, 08 de agosto de 2014
por Jornal A Voz da Serra

Pierre Moraes

É ao mesmo tempo admirável e fascinante experimentar no universo da leitura a atemporalidade de uma obra. Eis que estamos diante da produção literária de Machado de Assis, maior autor da história de nossa literatura. E argumentos não faltam para essa afirmação.

Machado celebrizou a literatura nacional com uma vasta e rica obra: contos, romances, crônicas, poesias, teatro, crítica, traduções e uma bela miscelânea. A atualidade dos temas, da abordagem e das técnicas narrativas, ao mesmo tempo que impressiona, atrai.

Vou propor ao leitor uma viagem pela obra machadiana, a começar pelos contos, mais de duzentos, cuja objetividade narrativa, centrada na problemática humana, por certo incentivará à leitura aqueles que estão no limiar do seu desbravamento, bem como aqueles que já trazem no seu rol de leituras e releituras uma caminhada mais longa.

Apresento-lhe nesta oportunidade o conto "A Igreja do Diabo”, extraído da coletânea "Histórias sem Data” (1884). Aliás, confesso-lhes: é imperdível! Em quatro capítulos, o leitor irá experimentar, por meio de uma linguagem alegórica e intertextual, marcada por arguta ironia e por fino humor, uma crítica reflexão sobre a contradição humana. 

Conta a narrativa que um dia o Diabo, sentindo-se "humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada”, resolveu fundar uma igreja com suas próprias regras. 

Após considerar sobre o bom negócio que seria fundar uma igreja única, aproveitando o combate e a divisão entre as religiões, para "oficializar” o ato, lembra-se de "ir ter com Deus para comunicar-lhe a ideia, e desafiá-lo”. O celeste e infernal mas pacífico diálogo torna-se por si só um convite à leitura. O inimigo de Deus aproveita a ocasião para ironicamente comparar a religião a um comércio, cujo negócio envolveria a salvação.

Uma vez na terra, o Diabo não perde tempo. Visando conquistar a hegemonia entre todas as religiões, promete aos fiéis infinitos lucros, vida boa e prosperidades temporais. Prega o mal como o bem, o não-pecado como pecado, ou seja, as práticas derivadas do bem seriam então condenáveis e vergonhosas, ao passo que se desvituar das orientações divinas e semear a maldade seria algo sublime.

Por fim, após arregimentar um exército de fiéis, o Diabo se encontra perplexo: aos poucos, seus seguidores passam a praticar boas ações, ajudam uns aos outros discretamente, como que parecessem não resistir a fazer isso.

O Diabo se sente traído e procura a Deus. Resultado: boa leitura!  

Esse conto, como toda a obra machadiana, é de domínio público: pode ser facilmente encontrado em sítios eletrônicos de leitura na internet.


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