Eu estou perdendo os meus velhos.
Nos últimos anos, tão breves e longos, cada qual por sua vez pendurou a toga, bateu as botas e deixou no meu ser um buraco que nunca mais se fechará. E foi sucessivo; a perda ecoou em níveis diversos. Sofri da distância e da falta da materialidade do afeto – e não pude não ser tão sozinha. Afinal, aqueles que eram meus já não existiam – justo eles, que nunca haviam deixado de estar onde sempre haviam estado.
Ficou o buraco e o medo, já que a perda – bem se sabe – não se divide em sequências, mas se acumula no tempo, de modo que logo antevi o futuro e soube que minhas células se oxidavam naquele pungente instante (oxidavam mais eficientemente do que nunca antes!) e também eu envelhecia, a olhos vistos, em microssegundos, enquanto observo que já minha mãe tem feições diferentes e que meu pai usa seus óculos na pontinha do nariz.
Não são mais moços. E me dói, porque logo serão eles os meus velhos, tão fragilmente passíveis de perder-se e, ao mesmo tempo, tão meus que os queria carregar comigo, sempre, no bolso e coração – do modo que faz a menina da cantiga, como um botão pequeno.
Eu os temo longe e sofro por antecipação, a conta-gotas, porque a existência deles, como foi a de meus avós, me constitui e sustenta; porque sei que, não importa onde no mundo eu esteja, tendo-os, tenho também uma casa e, ao pensar na distância, sinto-me sem-teto.
Mas aí me lembro de uma cena-símbolo: ganhei uma bicicleta quando tinha sete anos, resultado de economias e sincera vontade de me ver exercitando as pernas, feliz – porque nada no mundo pode ser melhor do que ter uma bicicleta nova só sua. A simbologia da cena constitui-se, pois que serve de alegoria para tudo o mais que daí adveio. Nesse dia, em especial (para efeitos de facilitar a imagem, direi que estava nublado, mas quente – e o céu estava branco), pela primeira vez na vida, aprendi algo absolutamente novo.
E papai estava lá (e ainda tinha cabelos!) e segurava o selim para que eu me sentisse protegida e caminhou e correu por horas ao meu lado até que, triunfante, conduzi a bicicleta sozinha e, virando-me, o vi distante, acenando adeus, mas constante em seu orgulho também.
Essa cena durou dois segundos cronológicos. Mas, em minha mente, mesmo aos sete simples anos que tinha, pareceu se estender pelo tempo e que, de alguma forma, inaugurava o que viria a ser a minha realidade mais tarde. Por isso, volta a me acontecer, às vezes, como se partes posteriores da minha vida com ela dialogassem.
Há vezes, frequentemente em tardes secas e azuis, que sinto como se a minha vida fosse constituída de partes absolutamente diversas, cuja única e tênue ligação é a deriva num mar de acaso. Quando em deriva, vivo de dentro e me sinto fora do mundo, sem lugar de pertença, apenas acumulando os dias. Construo sonhos, me alimento daquilo que o dr. Oz disse ser mais saudável e vivo a partir de meus horários. E é libertador, de verdade, mas daí, no fim do dia, sinto uma solidão aguda e longa, como a extensão dos sete mares – e a deriva se impõe: não é sempre que me lembro o caminho de casa.
Daí, sinto a perda dos dias, lembro da distância e das pessoas e tudo é muito melancólico. Via de regra, é nessas horas que se abre o diálogo. Lembro da cena da bicicleta, inaugural. Lembro que meus pais me conheceram quando eu tinha sete anos (e tantas vezes antes disso!) e me ajudaram a colecionar flores, a colocar tatus-bola em potes de maionese, a escrever "pneu” com "p” mudo e prestaram os devidos esclarecimentos sobre a natureza arbitrária das vírgulas. Lembro que sempre cuidavam para que estivesse penteada e de dentes limpos.
E vejo que, mesmo estando deles tão distante, tendo minha própria casa e horários de gente grande – e mesmo que agora eles precisem de dois pares diferentes de óculos, ou que não se lembrem das coisas tão facilmente, para eles ainda carrego cachos fartos, corro pela Getúlio Vargas com um vestido vermelho estampado com girafas, que pinica, mas que é tão bonito que me faz parecer uma mocinha.
E ter ido embora (e repetido o feito com frequência) não é mais do que a cena infinita de novo, em diálogo com tudo o mais, em que triunfo sobre o desequilíbrio e alcanço a velocidade certa para me manter em movimento e, ao olhar para trás, orgulhosa e cheia de mim, vejo meu pai me acenando distante, mas presente. Constante e sempre e orgulhoso também, porque sabe que, dali em diante, seguirei sozinha, porque já não preciso tanto de ajuda.
Mas só de vê-lo acenando, saio da deriva, e instantaneamente acredito que tudo vai dar certo, porque sou amada e feliz.
E tenho cá o meu porto, que é magicamente móvel e me segue aonde quer que eu vá, porque é feito de lembranças e de uma presença maior do que a distância em si. É um porto mais forte que o tempo, porque é subjetivo. E, sabendo disso, não importa por quais mares navegue, sei sempre o caminho de casa. Suas mãos no selim são como o fio de Ariadne. Não me perderei.
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