Carlos Emerson Junior
Pedi licença para o cachorro, entrei no botequim e dei de cara com Poeta, rabiscando alguma coisa em seu Moleskine, com ar de pouquíssimos amigos. Na mesma mesinha de ferro estavam, como sempre, o Doutor e seu exótico chapéu australiano e o Cadeirante, anormalmente quieto.
– Bom dia pessoal. Que sol, heim?
– Humpf! – grunhiu o Poeta, sem levantar os olhos do seu trabalho.
– Junte-se aos bons, meu caro. Você demorou tanto que resolvemos iniciar a cirurgia sem a sua presença.
– Cirurgia? São só onze da matina, pelo visto a festa começou cedo!
– Nunca é cedo para ser feliz, retrucou o Doutor, levantando o insólito chapéu para coçar a ampla careca.
O Poeta parou de escrever e chamou o garçom:
– Mais um chope pra mim e bem gelado! Vou beber em homenagem a imbecilidade humana!
– Ô meu caro, não é porque você está sem inspiração que temos que descontar na humanidade. Eu também preciso de um assunto para minha...
– Ah, tá! E agora você quer comparar a criação de uma poesia com uma crônica? Poxa, basta olhar em volta e escolher o tema, você deve ser cego!
– Peralá – protestei. – São coisas totalmente distintas e além do mais…
O Cadeirante cortou bruscamente a velha discussão, ou seja, basicamente saber quem sofre mais para escrever:
– Parem vocês dois, esse assunto já encheu. Cortem fora uma perna, ou melhor ainda, os seus braços. Aí não vão conseguir escrever mais nada e nem encher a paciência dos outros com suas lamúrias inúteis!
– Lamúria inútil? Você bebeu, cara?
O Doutor caiu na gargalhada, deixando o Poeta tão vermelho que parecia que ia explodir. O Cadeirante, por sua vez, disparou:
– Estou acabando de chegar lá do supermercado da pracinha. Se já é difícil para um deficiente físico fazer compras, imaginem na hora de pagar. Tem um caixa preferencial para esses casos, mas quem disse que a cadeira de rodas cabe ali? Tive que dar a volta, o que, com o supermercado cheio, criou uma baita confusão. Para piorar, se você for pagar com cartão, tem que ir até um balcão bem alto, perto da saída, vá lá saber por quê! Resultado, mesmo esticando ao máximo a maquininha do banco, não houve jeito da infeliz chegar no meu colo. Para encurtar, tive que ligar em casa e pedir que alguém trouxesse o valor em dinheiro. Agora, que droga de acessibilidade é essa?
– Puxa vida, isso...
– E tem mais: ando de ônibus e esses veículos com acesso especial seriam uma mão na roda se a maioria dos elevadores funcionassem ou se os motoristas soubessem operá-los. Acaba que você fica dependendo da boa vontade de alguns abnegados pra te colocar lá dentro do busão, atrasando a viagem de todos os outros passageiros.
– Cara, mas esse sistema é tão...
– O problema é que nunca ouvem a opinião dos interessados! Por exemplo, as rampas de acesso nas calçadas são obrigatórias por lei, não é mesmo? Então por que não fazem as obras direito? Algumas rampas são tão íngremes que se você bobear vai parar no meio da rua, embaixo de um carro. E por falar nisso, suas excelências já repararam que o nosso “amado” botequim não tem rampa alguma e a sua calçada está toda quebrada? Aliás, quem é o responsável por essas calçadas horrorosas de nossa cidade?
– !!!
– Pois é isso, cara! Você não vive reclamando que não tem assunto para suas crônicas? Taí, senta logo, pede seu chope e aproveita o tema que estou te passando de graça. Mas não esquece de escrever que não existe meia cidadania ou cidadania deficiente. Somos todos cidadãos por completo e é dessa forma que o estado tem a obrigação de nos tratar.
Perfeito, meu caro amigo e aí está a sua crônica. Com todos os pingos nos is!
carlosemersonjr@gmail.com
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