Valfredo Melo e Souza (*)
Aqui começa a viagem para cima. Aqui começa a viagem para baixo. Escadas não só levam acima e abaixo. Escadas são passagens para outras dimensões. Portanto, não basta subir ou descer, mas transcender.
Há uma tendência na reflexão do renascimento e morte que nos conduz à Divina Comédia de Dante Alighieri (1265-1321). Há mais de setecentos anos que o homem faz esta incursão: o inferno de Dante. Dele invoco a lenda da Fênix nestas passagens. Os antigos acreditavam na existência dessa ave maravilhosa, corpulenta com a águia, ornada por um brilhante penacho, cauda alvíssima, matizada de penas escarlates, olhos cintilantes. Dizia a lenda que quando ela sentia que a vida em breve se lhe extinguiria, com plantas aromáticas tecia nos desertos da Arábia um ninho sobre o qual pousava exposta aos raios do sol, que a incendiavam. Naquela pira, se consumia; mas logo após surgia das cinzas outra fênix, que imediatamente dava sepultura ao que restava da sua antecessora, encerrando essas relíquias em mirra, que transportava ao Templo do Sol, em Heiópolis. Atribuía-se-lhe a duração de cerca de seiscentos anos, e representava-se como símbolo da Imortalidade.
Hoje, alguns humanos optam pela cremação dos corpos, após a morte, numa forma, talvez, do alcance dessa imortalidade da fênix.
O que nos mostra Dante após a morte, na Divina Comédia, será parecido com a verdade? Ou será um absurdo? Convém, pois, entrarmos no relato, na visão poética, com certa ingenuidade, e aceitar a suspensão voluntária da incredulidade, do mesmo modo que aceitamos no teatro, que aquele homem fantasiado seja Hamlet; nós nos abandonamos e embarcamos na representação. Shakespeare nos leva a isto.
A Divina Comédia é assim. Nas edições mais antigas predomina a interpretação teológica, depois no século XIX os comentários são mais históricos. No modo alegórico Beatriz simboliza a Fé, Dante simboliza o humano e Virgílio a razão. Mas na poesia acontece o encanto dos versos do poeta, a intensidade acompanha todos os cânticos do poema; o bardo se revela. Porém na interpretação estética, é que se verifica uma das virtudes máximas de Dante. Entremos nessa viagem com o “sonhador”, à terra das almas, para clarear as ideias. Um dia Dante achava-se perdido numa sombria floresta, pronto a ser atacado por um leão, uma pantera e uma loba, quando Públio Virgílio Maronis, (70-19 a.C), que já fizera semelhante viagem, descrita na Eneida, vem socorrê-lo, e juntos descem às profundezas da terra até alcançar o circulo mais exterior do inferno. “Visitae Interiora Terrae Retificandoque Invennies Occzdturn Lapidem.” O V.I.T.R.I.O.L. da iniciação maçônica.
Diante de todas as vicissitudes, agora cruzando a região do Purgatório, emerge para o Paraíso, guiado por sua amada Beatriz que, de estrela a estrela, alcançam, ascendentemente, em círculos, às glórias dos céus. Quanto mais alto, mais deslumbrante a luz. Luz que se revela ora em forma de águia, ora numa escada, ora numa cruz, tudo em direção ao En Sofh—o infinito.
“Olha dentro de ti: aí se encontra a fonte do bem, sempre capaz de jorrar, se souberes sempre cavar dentro de ti.” Este é o núcleo fundamental de toda a meditação.
Não importa o que a verdade é, mas aquilo que ela quer, as forças que ela move, as formas de vidas que ela cria.
(*) jornalista e escritor em Brasília
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