Silneiton Favero
Estamos em pleno Ano Internacional de Cooperação pela Água e já se discutem maneiras de as empresas integrarem-se mais ativamente na governança da água. Cabe abordar concisamente algumas questões prementes relacionadas à segurança hídrica e que afetam o setor produtivo, pois o momento é especialmente propício.
• Escassez qualitativa - A ameaça maior não é o desaparecimento da água. No ciclo hidrológico a água submete-se permanentemente à evapotranspiração, precipitação, percolação e recarga. Nesse sentido, a água não se esgota e sempre existirá em grandes quantidades. Todavia, as regiões do globo apresentam perfis hídricos muito distintos, os quais coexistem com diferentes situações demográficas, culturais, sociais, econômicas, comportamentais e de demanda em quadros de estresses hídricos e ambientais mais ou menos pronunciados. O cenário global é de aumento da demanda sobre reservas ameaçadas, enquanto os governos possuem diferentes capacidades para distribuir a água e gerenciar a qualidade e a quantidade do recurso em seus territórios. Ou seja: a abundância não se traduz necessariamente em disponibilidade e acesso.
• Produção agrícola - O cenário é tal que se necessita de água a taxas crescentes para produzir mais alimentos e biocombustíveis a fim de atender às exigências trazidas pela mobilidade social, o crescimento demográfico e o crescimento das economias em todo o mundo. A demanda por alimentos trouxe uma busca mundial por terras cultiváveis e por água para irrigação. A irrigação responde no mundo por algo entre 60% e 90% da demanda por água, a depender do país. Mas a expansão das fronteiras agrícolas enfrenta limitantes no imperativo de preservar florestas e biomas sensíveis, cuja conservação presta serviços ecossistêmicos de valor inestimável a toda a sociedade. Como garantir o acesso regular dos produtores de alimentos à água sem exacerbar potenciais ou existentes conflitos de uso com outros grupos usuários? Como fazê-lo sem comprometer o meio ambiente? Como equacionar a necessidade de produzir mais alimentos com menos água e a mesma quantidade de terra?
• Mudanças climáticas - Ainda que seja difícil isolar os efeitos do fenômeno para o nível local em se tratando de recursos hídricos, um possível cenário de alteração ampla das variáveis hidrometeorológicas significaria um impacto direto no ciclo hidrológico, afetando as reservas hídricas em geral. As adversidades climáticas, no caso da concretização de tal cenário, trariam problemas ao ambiente urbano e ao rural, com questões para a saúde humana, a produção de alimentos, geração de energia e para a integridade das infraestruturas de suporte à sociedade. Admitindo o princípio da precaução, é inevitável que se desenvolvam estratégias nacionais de adaptação que considerem a interação da água nos ambientes urbano e rural com os fatores que afetam a segurança hídrica para a produção de alimentos, de bens e serviços e a geração de energia. Isso exige articulação entre setores e integração de políticas.
Pelo que foi brevemente exposto, conclui-se que a segurança hídrica interpõe-se em escalas múltiplas às sociedades neste século. A gestão do acesso e da disponibilidade de água de qualidade e segura para o consumo encontra óbices consideráveis e ainda irresolutos em muitas partes do globo, inclusive no Brasil. Entretanto, reconhece-se que a solução é complexa porque a questão da água exige, como se disse, articulação entre setores e integração de políticas. Isso desafia a prática e a tradição da gestão pública no Brasil, usualmente promotoras de soluções estanques e desarticuladas, geradoras de ineficiências financeiras, operacionais e de impacto. Desafia também as empresas, que se atêm à conformidade legal, raramente envolvendo-se na governança da água ou comprometendo-se com metas de conservação nas bacias hidrográficas que as hospedam.
A cada um - governos, sociedade, empresas - cabe sua cota de responsabilidade, pois a água é um bem público. Assim, os grandes usuários de água no setor produtivo têm responsabilidade na manutenção ou melhora da qualidade ambiental. A água agrega valor para a empresa e seus produtos e condiciona suas relações com os stakeholders e com o ecossistema. Isto é: a viabilidade do negócio é função da disponibilidade e da qualidade do recurso. Da mesma forma, o mal-uso desagrega valor, através de externalidades difíceis de custear, pois quem paga é a sociedade, que dispõe de menor qualidade e disponibilidade desse fundamental recurso à vida. Qual a monta do custo social? Difícil quantificar.
Sinais positivos endereçados ao setor produtivo para promover o uso responsável da água e a melhora da hidrointensidade nos processos produtivos devem estar combinados com a exigência de conformidade com os marcos legais. Para ilustrar, não se conta hoje com séries históricas completas de dados hidrológicos e dados de monitoramento da qualidade da água em muitas bacias hidrográficas brasileiras, o que pode obstar a verificação do uso responsável da água se uma empresa proativamente decidir implementá-la. Portanto, os órgãos gestores e regulatórios de recursos hídricos devem ser a matriz de critérios, dados e informações que permitam ações que elevem a qualidade dos usos em geral.
As empresas verão esses sinais como uma oportunidade de inovação na gestão da sustentabilidade da água dentro de limites organizacionais mais amplos e para além da mera eficiência hídrica em processos internos - enfatizando o uso responsável da água em toda a cadeia de valor, o que as inserirá na governança da água e nos esforços globais de conservação do recurso de maneira efetiva.
Silneiton Favero é especialista em Gestão de Recursos Hídricos e consultor sênior da Green Domus Desenvolvimento Sustentável Ltda. (www.greendomus.com.br)
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