Espaço de Leitura - Fechar a história – História aberta

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sexta-feira, 11 de janeiro de 2013
por Jornal A Voz da Serra

Francisco Gregório Filho

O escritor Mia Couto, nascido em Moçambique, em África, é um dos escritores mais produtivos de nossa época. Com mais de vinte livros nas listas das editoras e livrarias, transita com a mesma desenvoltura por diversos gêneros, como romances, contos, crônicas e os textos de caráter ensaísta. Em seus depoimentos sempre sublinha a grande influência que recebeu em sua formação de leitor e escritor, ainda em seu país natal, do grande escritor brasileiro Guimarães Rosa. 
A cada balanço que faz de sua produção, Mia Couto relembra sua infância passada em cidades como Maputo e tantas outras naquele país, ainda colônia de Portugal. O menino cresceu com um olhar aguçado para as culturas de seus conterrâneos e contemporâneos, apreciando as vozes narradoras de sua ancestralidade. Curioso, procurava apurar a escuta nas rodas de histórias promovidas por seus avoengos. E claro, sempre que possível cruzando o que ouvia com o que lia nos livros de Guimarães Rosa. 
Formou-se em biologia. Testemunhou a luta de seu povo por autonomia e a conquista da liberdade das amarras de Portugal sobre seu país. Trabalhou muito como biólogo em diversas comunidades, oferecendo seu apoio a todo o processo de emancipação moçambicano. Com isso, como ativista e, ao mesmo tempo, um experiente escutador, se desenvolveu também como um observador narrador e daí como escritor que possui fina e delicada maneira de dizer e compartilhar o que vê e o que sente em suas singulares escrituras.
Esses dias recebi mensagem de ano-novo de um amigo leitor e grande admirador de Mia Couto. Esse amigo querido que me enviou a mensagem é Cristiano Mota, músico, dramaturgo, ator e grande encenador. Cristiano é um estudioso da literatura de língua portuguesa e organiza circuitos de leituras dramáticas em diferentes espaços culturais. Ano passado fui privilegiado com um convite de Cristiano e seu irmão Ronaldo, outro artista múltiplo, para participar de um desses circuitos, integrando uma trupe leitora de três contos escolhidos e dirigidos por Cristiano. Foi uma maravilha a experiência. Os auditórios lotados de leitores curiosos em ouvir as leituras  desses contos a partir de nossas vozes—“O boitatá”, de Simões Lopes Neto; “Conversa de boi”, de Guimarães Rosa, e “Nas águas do tempo”, de Mia Couto.  
Os jovens ouvintes atentos saboreavam cada palavra lida por nós com tal grau de concentração que as leituras pareciam verdadeiras celebrações. E eram. Celebrávamos os escritos desses autores que tinham inspirações semelhantes. Guimarães Rosa dizia que toda a sua escrita era influenciada pelas leituras dos livros do gaúcho Simões Lopes Neto. Mia Couto por sua vez declara em voz alta e em bom tom que sua escrita tem inspiração nos textos de Rosa. Bem tínhamos aí um bom mote para unir os contos desses três autores que explicitam suas fontes de leitura e referências de escrituras. Gostei muito de participar dessa experiência e espero e fico mesmo na expectativa que essa história continue em aberto. Uma boa história para não ser encerrada.  
Bom, amigos leitores, voltando ao meu amigo Cristiano e sua mensagem, transcrevo aqui trecho do texto que me enviou e que me inspirou para escrever a coluna de hoje. Esse trecho é parte de uma intervenção do Mia Couto em Encontros e Encantos - Guimarães Rosa, promovido pela Universidade Federal de Minas Gerais e realizado em 2007. 

“(...)E foi poesia que me deu o prosador João Guimarães Rosa. Quando o li pela primeira vez experimentei uma sensação que já tinha sentido quando escutava os contadores de histórias da infância. Perante o texto eu não lia simplesmente: eu ouvia vozes da infância. Os livros de João Guimarães Rosa atiravam-me para fora da escrita como se, de repente, eu tivesse me convertido num analfabeto seletivo. Para entrar naqueles textos eu devia fazer uso de um outro ato que não é ler, mas que pede um verbo que ainda não tem nome. 
Mais que a invenção de palavras, o que me tocou foi a emergência de uma poesia que me fazia sair do mundo. Aquela era uma linguagem em estado de transe, que entrava em transe como os médiuns das cerimônias mágicas e religiosas. Havia como que uma embriaguez profunda que autorizava a que outras linguagens tomassem posse daquela linguagem. Exatamente como o dançarino da minha terra que não se limita a dançar.. Ele prepara a possessão pelos espíritos. Ele cria o momento religioso em que emigra do seu próprio corpo.
Os contadores de histórias do meu país têm de proceder a um ritual quando terminam a narração. Têm de “fechar” a história. “Fechar” a história é um ritual em que o narrador fala com a própria história. Pensa-se que as histórias são retiradas de uma caixa deixada por Guambe e Dzavane, o primeiro homem e a primeira mulher. No final, o narrador volta-se para a história - como se a história fosse uma personagem - e diz: - Volta para a casa de Guambe e Dzavane.
É assim que a história volta a ser encerrada nesse baú primordial.
O que acontece quando não se “fecha” a história? A multidão que assiste fica doente, contaminada por uma doença que se chama a doença de sonhar. João Guimarães Rosa é um contador que não fechou a história. Ficamos doentes, nós que o escutamos. E amamos essa doença, esse encantamento, essa aptidão para a fantasia. Porque a todos não nos basta ter um sonho. Queremos mais, queremos ser um sonho.
Muito obrigado a vocês por me ajudarem a ser esse sonho.”

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