Para meu Pai e meu Tio Raimundo
Carmélia Aragão
Um dia, meu tio do meio, irmão da minha mãe, viu sobre a mesa meus apontamentos de aula do que hoje equivale ao nono ano e disse que minha caligrafia era bonita e que, por isso provavelmente, deveria desenhar muito bem. Na verdade, ele me deu a ideia de começar a traçar linhas formando imagens (cujo resultado foi bem ruim, embora divertido). Mas, o importante é que até aquele momento eu nunca tinha pensado na relação entre a caligrafia e o desenho. Pois bem, peço perdão ao meu tio, e digo: não há nenhuma mesmo. Conheci várias pessoas com letra indecifrável, mas que são profissionais dos quadrinhos, das artes plásticas, entre outras tantas atividades exigentes da arte do desenho.
Vi na TV uma reportagem que dizia: a caligrafia está ligada à personalidade de seu dono. Uma letra inclinada pra esquerda indica timidez; já para a direita, orgulho e vaidade. Quase caí morta nesse dia, afinal, minha inclinação é para a direita. Ora, aprendi no catecismo que orgulho e vaidade não são bons predicados. Além do mais, timidez não me falta. Outra falha dessa teoria, por exemplo, é a letrinha pequena e descuidada de minha mãe, uma mulher com personalidade de líder sindical. Já meu pai, de letra forte e imponente, tem um quê de bastidores como eu.
Aliás, foi meu pai, anos antes de meu tio me fazer o primeiro elogio caligráfico, que pegou meus garranchos de sexta série e me disse coisas bem desagradáveis acerca de meu código de escrita. Pai, talvez o senhor nem saiba, mas depois de ouvir suas poucas e boas fui à enciclopédia Barsa (saudoso tempo em que as enciclopédias existiam) e me apropriei da caligrafia comercial inglesa do séc. XIX (adicionada de uns toques tropicais). Virou uma marca. Meu cartão de visitas. Elogios. Propostas de trabalho. Sim, orgulho e vaidade. Por que não? Mas sou preguiçosa o bastante para me tornar calígrafa.
Outro mistério que ronda minha escrita chama-se Antônio Fausto de Loiola Filho. Um tio-avô que não conheci pessoalmente, mas não faz muita diferença, porque, pelas histórias, o conheço demais. Mulherengo. Jogador. Boêmio incorrigível. Morreu numa mesa de jogo. Morreu feliz! Creio. Seu ponto fraco: medo de fantasma! Ouvi inúmeras vezes dos mais antigos que tanto eu como ele tínhamos a mesma caligrafia. Nunca vi, mas juram que sim. Talvez Kardec o explique ou senão o Pe. Mendel com seus protoestudos genéticos.
Depois de passar tanto tempo, ainda continuam a me olhar com espanto, como um bicho exótico. Talvez por causa da estandardização da caligrafia pelo computador, que a deixou fria e impessoal. A assepsia digital tornou a escrita cursiva uma coisa muito íntima, às raias da desimportância pública. O que é um bilhete de despedida sobre a mesa? O esforço do filho para agradar os pais? Uma declaração de amor? Ou uma simples lista de supermercado? Todas essas coisas são capazes de nos deixar sensivelmente desarmados. E por que não? Bom, talvez eu seja mesmo um bicho exótico. Ou melhor: um bibelô raro e inútil.
* Carmélia Aragão é escritora. Atualmente faz doutorado em Literatura na PUC-Rio. Gosta de desenhar para si e
presentear os amigos com textos escritos à mão como poemas, trechos de contos ou romances dos autores que mais admira.
Contato: carmelia.aragao@gmail.com
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