Acostumados à imagem europeia das fadas que ilustram os contos de fada desde o início da literatura infantil, fica difícil nos descolarmos da figura sempre tão loura, tão esguia, tão doce que nos foi imposta — e conseguirmos contextualizá-la nos contos das diferentes culturas.
Nas cidades em que dou oficinas de contadores de histórias, por esse Brasil afora, costumo contar uma história escrita por Gail Harley, chamada “O Baú das Histórias”. Trata-se de uma antiga história da cultura iorubá, que nos conta como Ananse, o homem-aranha, conseguiu comprar as histórias de Nyame, o Deus do Céu, que ficavam encerradas dentro de um baú, para espalhá-las pelo mundo. Para tanto, o Deus lhe impõe três tarefas, entre elas, que ele lhe traga Moatia, a fada que nenhum homem viu.
Após contá-la, costumo passar o vídeo da história. A reação invariavelmente é a mesma: como uma fada negra? Como uma fada tão diferente? Uma fada que se irrita? Que ameaça bater numa boneca de piche?
Embora eu enfatize a procedência africana da história enquanto a narro, embora a narrativa esteja pontuada por palavras estranhas e conserve as onomatopeias características dos contos iorubá, a aparição de Moatia, trajada com uma saia de palha, com um turbante na cabeça, e desafiando uma boneca de piche que não responde a suas perguntas, sempre causa estranhamento. É como que se a imagem de uma fada humanizada, com características de sua raça e capaz de sentimentos menos nobres, fosse uma espécie de traição a uma concepção há muito enraizada em nosso imaginário.
No entanto, as histórias clássicas, os mitos gregos, as lendas dos mais variados países, nos falam o tempo todo das alterações físicas e de humor dessa figura atemporal que habita nossa imaginação.
Não podemos nos esquecer que no clássico A Bela adormecida foi uma fada, e não uma bruxa, que lançou sobre uma recém-nascida uma sentença de morte por não ter sido convidada para o banquete de seu batizado; que na história As fadas, recolhida por Perrault, a mesma fada que deu a uma menina o dom de, ao falar, verter pela boca rosas e pérolas, condenou a outra a cuspir sapos, escorpiões e toda sorte de animais peçonhentos cada vez que pronunciar uma palavra. Melusina, que se transformava em serpente a cada sábado, Morgana, ora jovem, ora velha, as Moiras, implacáveis donas do destino temidas até por Zeus, são apenas alguns exemplos das oscilações de humor e das transformações das quais essas criaturas mágicas são capazes.
Antero de Quental em seu poema “As fadas”, nos fala sobre elas e nos adverte:
(...) Quem as ofende...cautela!
A mais risonha, a mais bela,
Torna-se logo tão má,
Tão cruel, tão vingativa!
É inimiga agressiva,
É serpente que ali está!
E têm vinganças terríveis!
Semeiam coisas horríveis,
Que nascem logo do chão...
Línguas de fogo, que estalam!
Sapos com asas, que falam!
Um anão preto! Um dragão!
Ou deitam sortes na gente...
O nariz faz-se serpente,
A dar pulos, a crescer...
É-se morcego ou veado...
E anda-se assim encantado,
Enquanto a fada quiser! (...)
Temos, então, uma excelente oportunidade de refletir não só sobre a natureza das fadas, mas sobre o que faz com que essas histórias se espalhem, quase que por magia, por todos os cantos do mundo, ganhando em cada canto um novo colorido, uma nova roupagem, um novo cenário, mas falando sempre, embora com os sotaques mais variados, das necessidades e sentimentos mais básicos do ser humano.
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