A primeira enchente da Vila de Nova Friburgo

Por Maria Janaína Botelho Corrêa
sexta-feira, 27 de maio de 2011
por Jornal A Voz da Serra

Desde a fundação da Vila de Nova Friburgo que as enchentes do Rio São João das Bengalas fizeram parte do cotidiano de seus habitantes. O cemitério, outrora localizado onde hoje é o prédio da Maçonaria, na Rua Sete de Setembro, foi alterado devido aos inconvenientes das enchentes periódicas. Após o rebaixamento das águas, os cadáveres ficavam expostos, provocando constrangimento entre a população, e, por isso, o cemitério foi transferido para a parte alta da cidade, onde atualmente se localiza. As enchentes provocavam extensas formações de pântanos e acreditava-se à época que doenças como a “febre dos pântanos” ou “febres palúdicas” e a febre amarela eram provocadas pelos miasmas deletérios e palúdicos que se desprendiam de águas estagnadas. É intrigante que mesmo com as enchentes periódicas na estação das chuvas, provocando danos materiais, a vila se desenvolveu no entorno do Rio Bengalas, onde foi estabelecido o comércio, as melhores residências, as praças; enfim, toda a atividade urbana se fixou nas proximidades do rio. Se os vereadores sabiam do inconveniente das enchentes periódicas do Bengalas, porque o núcleo urbano não se estabeleceu mais distante dele? A Câmara Municipal concedia terrenos que lhe pertencia a particulares, estimulando a construção na vila. A maior parte desses terrenos estavam localizados onde hoje é o centro da cidade. Os beneficiários que recebiam esses terrenos eram obrigados a construir em determinado prazo, pagando em contrapartida anualmente um foro aos cofres públicos. O aforamento era uma forma encontrada para gerar receita, pois os beneficiários pagavam o foro, e no caso de venda o laudêmio, e se constituiu numa das principais receitas da Câmara. É provável que o desenvolvimento da vila de Nova Friburgo se deva a esse estímulo na edificação em terrenos pertencentes à Câmara, denominados de próprios nacionais. O objetivo dessa matéria é demonstrar o impacto das enchentes em alguns momentos da história de Nova Friburgo. Apresento adiante um relato de uma enchente ocorrida na ocasião do estabelecimento dos colonos suíços, no início do século XIX, e como desestruturou o núcleo colonial. Já na primeira metade do século XX, a vasta quantidade de imagens fotográficas sobre as enchentes em Nova Friburgo fala por si. Conforme verificamos nas imagens, as enchentes causavam transtornos à população não muito diferente dos tempos atuais.

O problema de Nova Friburgo nos dias de hoje reside muito mais nos desmoronamentos de barrancos e morros em razão da ocupação irregular das encostas. Essa prática foi respaldada pelo poder público ao longo de anos, já que essas residências pagavam IPTU. Dois fatores provavelmente contribuíram para o aumento vertiginoso da população de Nova Friburgo entre o segundo e terceiro quartel do século XX. De um lado, o empobrecimento de municípios do noroeste fluminense, as “cidades mortas”, como disse Monteiro Lobato, onde parte da população emigrou para Nova Friburgo em busca de melhores oportunidades. O segundo fator foi o processo de industrialização sobre a qual passou Nova Friburgo, atraindo boa parte dos habitantes desses mesmos municípios para trabalhar em suas indústrias. A falta de planejamento urbano não é novidade em todas as cidades do país e as favelas do Rio de Janeiro são o que melhor exemplificam a ausência de políticas públicas nesse aspecto. Diante da tragédia de janeiro último, lembrei-me de uma passagem interessante do livro de Martin Nicoulin, “A Gênese de Nova Friburgo”, que discorre sobre o inconveniente das chuvas de novembro de 1820 a início de 1821. A primeira colheita dos colonos suíços foi um fracasso devido às constantes chuvas e inundações. O desânimo foi geral. Conforme Nicoulin, “durante o primeiro trimestre de 1821, Nova Friburgo vegeta”. Os suíços abandonaram suas datas de terras no Núcleo dos Colonos e retornaram para a vila. Um clima de tensão aumentou entre os colonos suíços culminando com a violência para desespero dos administradores responsáveis pela recém-criada colônia de imigrantes estrangeiros. Essa passagem nos faz refletir sobre a relação desse triste episódio de destruição da vila há quase dois séculos atrás e o que ocorreu no dia 12 de janeiro último.

Uma sensação de déjà vu. Segue a narrativa do que ocorreu em Nova Friburgo quando da formação do núcleo colonial.

“O início da estação das chuvas será determinante. Em novembro chove. O mau tempo impedirá os colonos de continuarem os trabalhos. As obras da estrada central também ficam paralisadas. Em dezembro, as mesmas condições atmosféricas. Durante esse tempo, observador Porcelet anota: ‘Chegou a notícia inesperada e mais desoladora ainda de que, em várias fazendas dos colonos cuja primeira vegetação tinha oferecido brilhantes esperanças, viam-se a cada dia definhar e morrer as colheitas’. E as chuvas contínuas provocam a catástrofe. As sementes brotaram, mas não haverá colheita. É o fim das esperanças de outubro. A primeira safra será um fracasso.(...) Agora, veem fracassar sua primeira experiência como agricultores. Desanimados, abandonam as fazendas e voltam para a vila. Mas, com as chuvas, Nova Friburgo apresenta aos colonos um aspecto desolador. A construção do quartel de polícia e do mercado está parada. O Rio Bengala transbordou, as pontes que não foram arrastadas ficaram danificadas. A enchente atingiu as casas. Uma delas, de pedra, que os colonos estavam construindo, desmoronou. As árvores plantadas nas calçadas foram arrancadas. Os riachos tornaram-se torrentes que devastam os jardins. Derrubadas, as cercas são pisoteadas pelos bois, vacas ou porcos. Tudo está inundado. Durante alguns dias, as vias públicas ficam fechadas. Sob as chuvas incessantes e pesadas do verão brasileiro, Nova Friburgo não parece mais uma vila, mas um alagado. Um ano após a chegada [refere-se a chegada dos suíços], apresenta de novo uma paisagem desoladora. O progresso estancou. Parece que tudo tem de recomeçar.

Decepcionados, os pioneiros voltam a morar em suas casas apertadas [as antigas casas construídas na vila para os colonos].(...) Para a maioria é o desânimo. Alguns documentos encontrados demonstram muito bem esse estado de espírito. Os colonos ociosos reúnem-se. A miséria brasileira faz surgirem inúmeras tabernas. O vício nacional característico dos moradores de Fribourg [Suíça] em 1817, no dizer do Conselheiro de Estado Schaller, manifesta-se em Nova Friburgo. Os colonos bebem para matar o tempo e esquecer. Abatidos com o resultado de seu eldorado, procuram no copo de cachaça um paraíso artificial. Em 5 de novembro, Miranda [Inspetor responsável pela Colônia] lastima todas essas bebedeiras; dá ordens enérgicas a seu diretor a fim de que se trabalhe ‘com eficácia por estancar esta fonte perene de desordem na colônia’. O inspetor compreende que a ociosidade pode tornar-se perigosa. A situação social vai-se deteriorando em Nova Friburgo à medida que as fazendas decaem. Em dado momento, os colonos se desentendem, trocam insultos. Chegam às vias de fato; à noite, ecoam tiros de fuzil, há tumultos, estupros; cabeças ensanguentadas por facadas apresentam-se ao médico. Nova Friburgo passa por sua primeira onda de criminalidade. Convém notar que esta se segue ao fracasso da primeira colheita [devido às incessantes chuvas]. É de acreditar que em dezembro a situação fosse alarmante, pois o diretor, receando que ‘sobrevenham catástrofes’, pede demissão. O sonho de Miranda acaba de modo brutal.” (Nicoulin, Martin, “A Gênese de Nova Friburgo”, 1996, pp. 200-201) (grifos meus)

Maria Janaína Botelho Corrêa é autora do livro “O Cotidiano de Nova Friburgo no final do Século XIX – Práticas e Representação Social” e professora de História do Direito na UCAM.

CONTINUA DEPOIS DA PUBLICIDADE
TAGS:
Publicidade