O gato de Alice
Carmélia Aragão
“É inevitável — disse o gato —, somos todos loucos aqui”.
(Fala do Gato de Cheshire in Alice no País das Maravilhas).
“Este imóvel já vem com um gato”, disse-nos o corretor. Andei pelos cômodos vazios à procura, nem sombra do tal felino. Não gostava de gatos, mas o apartamento era barato e bem localizado, portanto, não havia muito que especular. Talvez o animal nem desse pela nossa existência, meu marido e eu voltávamos tarde do trabalho. Além do gato havia também, na sala, uma poltrona velha que, por ser rara, não nos desfizemos.
Três dias depois, acordei com o cesto de roupa limpa impregnado de pelos, a dispensa e o lixo revirados. Cada acordar, uma surpresa: a sala destruída, o armário arranhado, um jarro quebrado, dejetos sobre o sofá. Resolvemos caçá-lo, mas o senhor do 203 advertiu-nos que seria impossível. Os vizinhos do condomínio tinham a vaga lembrança de um gato nos braços da antiga proprietária deste apartamento (103, bloco dos fundos) — “uma mu- lher branca de cabelos escuros: a mulher mais branca do mundo” — observaram.
Ruídos. Barulho de panelas. Cacos. Ele sabia que procurávamos por ele. Do quarto, escutávamos o arfar de um bicho cansado farejando a nossa porta. Não poderia ser apenas um gato. Em vão, tentamos ludibriá-lo com o melhor leite, a melhor ração, o melhor bife. Tudo amanhecia intacto. Adivinhava nossa armadilha. Em vão também telefonávamos à imobiliária. Burocracia. Dificuldades. Suplicamos pelo menos o endereço ou o telefone da antiga moradora, a dona do animal. Nada sabiam sobre ela. Sentíamo-nos como reféns daquele “bicho invisível”.
Inesperadamente, recebemos a visita do corretor que nos vendeu o apartamento. Mostrou-nos uma foto dela que havia encontrado no chão do quarto onde foi a biblioteca. O retrato, provavelmente recortado, faltava-lhe uma das mãos. Disse tê-la visto apenas uma vez, no dia da entrega da chave, sentada, com o gato no colo, naquela poltrona velha, enquanto todo resto se fazia vazio.
Às três da manhã, levantei-me a fim de esperá-lo. Atrás do sofá, enxerguei-o no centro da sala. Era realmente um gato a mirar a poltrona. Diabolicamente, possuía as garras muito longas e um número enorme de dentes como se sorrisse. Sentiu minha presença. E, por saber-me, lançava-me o desafio da imobilidade, permanecendo paralisado quase até o amanhecer, quando partiu. Corri para avisar meu marido.
Ainda atordoados, em meio ao café da manhã, a campainha tocou. Era ela, a mulher mais branca do mundo, num vestido verde, segurando nos braços o monstruoso gato sorridente. Sem que oferecêssemos, entraram. Sentaram-se em seu antigo lugar. E, quando o bicho saltou-lhe aos pés, percebemos que, de fato, ela não possuía a mão esquerda. Calada, permaneceu ali, por mais de uma hora, não falou a que veio, nem o que queria de nós.
Ainda atordoados, em meio ao café da manhã, a campainha tocou. Era ela, a mulher mais branca do mundo, num vestido verde, segurando nos braços o monstruoso gato sorridente.
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