Quando eu era menina, havia um livro, na casa do sítio da família, que se chamava Coisas e Seres Extraordinários. Capa dura colorida, formato pequeno, quadrado, contrastava com as páginas em preto e branco, diagramadas como quadrinhos assimétricos, imagens em bico de pena, que se referiam cada uma a algo “extraordinário”, sempre em torno da natureza, explicado em boxes pequenos.
Lá, eu li muitas vezes (eu adorava o livro!) uma palavra que nunca mais ouvi ou pronunciei até o dia em que percorri o trajeto que liga dois distritos de Nova Friburgo (Duas Pedras e Campo do Coelho) em direção a Teresópolis, depois da noite ou madrugada de 12/01/11. A palavra é: cataclismo.
Ela me veio à cabeça subitamente, quando olhei o que era uma estrada e agora é um caminho de lama e pedras: um cataclismo! Uma cadeia de montanhas, antes intocadas, com mata virgem sobre puras pedras gigantescas, desmanchou em avalanches de terra, troncos, granitos, tomando todo vale, fechando rios e espalhando o terror noite afora. Vista agora, a serra parece rasgada a garras - e o foi - por um bombardeio de raios, e sacudida por trovões que enlouqueceram os cães e os homens. Montes e colinas foram lavados por uma cortina de água com o peso de três meses de acúmulo a 14 km de altitude, mas caída numa só madrugada, ininterruptamente.
Entre as encostas liquefeitas e os rios engrossados a uma altura dez vezes superior ao curso habitual, desapareceram matas, casas, carros, edifícios, famílias inteiras e socorristas generosos, mas expostos à madrugada “sísmica” – foi o que muitos pensaram, quando em torno das seis da manhã, já clareando o dia, por toda parte, a terra despencou, com estrondo desconhecido, sobre construções sólidas, seguras até então, longe das margens fluviais e dentro de uma ordem urbana jamais posta em dúvida. O que se viu àquela hora, em um raio de mais de vinte quilômetros, fez os que testemunharam os primeiros quadros de horror pensar em terremoto, em fim do mundo! Uma enchente diluviana cobriu pontes, canteiros, muradas, arrastando tudo o que estava em seu caminho.
Eu, vendo a estrada desfigurada, a terra arrasada, troncos arrancados, carros retorcidos, pedras por dinamitar, os incontáveis mortos e desaparecidos, só encontrava expressão na palavra revisitada: um cataclismo! Rios sem leito, corpos insepultos, lama pelos telhados, mortos sem ter quem os reclamasse – ricos e pobres, moradores e visitantes, centro e periferia – as cicatrizes não deixam dúvidas: houve aqui algo com a força de um cataclismo! O que aconteceu na serra fluminense, neste janeiro, meteorologistas e hidrologistas, geólogos e físicos tem tentado explicar, mas o espanto está em que tais fatores envolvidos convergem a cada 500 anos! Triste recorde nacional de catástrofe climática!
Lembrei-me da descrição da enchente do Paquequer, em O Guarani, de José de Alencar e que o rio ficava, na ficção, próximo desta área, justamente. Em Alencar, o cataclismo seria prenúncio de um novo Gênesis, de um novo mundo, de uma outra raça... Aqui, o que será? O que nos espera?
Sei que não adianta contar, depois do socorro emergencial e solidário que veio de toda parte, com recursos suficientes, liberados e aplicados com agilidade (o que é efetivamente mais que duvidoso) porque, além de honestidade, precisamos de capacidade administrativa, ordenação de serviços, planejamento das ações e persistência, muita persistência. Em quantos pontos da cidade se amontoam doações de roupa com risco de mofo, água e alimentos com validade vencendo? Nem as autoridades o sabem!! Há que se contar com uma informação ágil e permanente à população, orientação pela mídia sobre o passo a passo do projeto e uma convocatória a cada um para que participe do resgate da sua história, da memória não só do passado dos colonizadores que muito legaram a estas serras, mas o que de atividades culturais estas cidades trazem como marca sua, de suas jovens gerações. Viver para reviver!
Se algo não for feito na direção de uma participação efetiva dos habitantes que não se entregaram ao êxodo, algo que levante a autoestima em crise, abalada, será a vez dos oportunistas, dos aproveitadores que vão enriquecer no pano de fundo da destruição cujas marcas vão levar até oito anos para desaparecer da cidade e mais de cinquenta para serem recobertas pela natureza. Mesmo assim, esta geração não vai esquecer o que viveu e a cada chuva que se anuncie, temerá um novo cataclismo,... que agora sei o que é, ao vivo.
Eliana Yunes
Profª Associada da PUC-Rio
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