Falamos semana passada do sobrenatural na literatura. Logo me veio à memória uma história familiar que tanto me assombrou na infância.
O motivo
A avó fazia todas as suas vontades, menos uma, ter um cachorro.
Gatos até que ela permitia. Ela tinha uma chamada Sheik. Uma gata vira-lata, de um olho azul e outro verde, que vivia tendo gatinhos e nunca permitia ser colocada no colo. Por isso ela tentava, em vão, ter um cachorro.
– De jeito nenhum - dizia sua mãe -, sua avó tem medo de cachorros.
– Mas eu não deixo ele entrar em casa - dizia a menina.
A avó, que sempre atendia a todos os seus pedidos, fingia-se ocupada para não entrar naquela discussão. Um dia, o irmão mais velho ouvindo mais uma vez aquela lengalenga, esperou um momento em que ela estava sozinha e falou:
– Olha, não é que a vó tenha medo do cachorro morder ela não. É medo muito maior. Aconteceu há muito tempo, quando tia Carmem era uma menininha como você.
A ideia de tia Carmem, uma tia freira que usava uma roupa esquisita e que lhe parecia velhíssima, ter sido um dia uma menininha, fez a menina dar uma risada alta.
– É isso mesmo sua boba - disse o irmão rindo também -, ou você achava que ela já tinha nascido velha? Uma menininha que também cismou de ter um cachorro, e ficava o dia inteiro assim, como você, enchendo o saco de todo mundo. Tanto ela insistiu, que quando a cadela de tia Edi deu cria, a vó deixou que ela ficasse com um filhote. Deram-lhe o nome de Abacaxi, e ele e tia Carmem logo se tornaram amigos inseparáveis. Onde ia um, ia o outro. Mais ou menos como você e essa gata nojenta.”
– Sheik não é nojenta! - protestou ela.
– Nojenta sim, e tem nome de gato. Contam que com o tempo - continuou ele -, todos passaram até a gostar dele de tão esperto que o danado era. Então um dia, vovó e tia Edi estavam falando no telefone, quando vovó disse que precisava desligar porque tia Carmem estava gritando como uma louca, e tia Edi disse que tinha de desligar também porque a cadela estava uivando como uma desesperada. Pois não é que quando vovó chegou no quintal, tia Carmem ia entrando aos berros com Abacaxi morto no colo? Havia sido atropelado por um caminhão.
– Tá - disse ela -, mas e daí?
– Daí, sua boba, que na hora que o Abacaxi morreu aqui em Copacabana a cachorra de tia Edi começou a uivar lá em Ipanema! E não é só isso. Desse dia em diante, sempre que vovó vê o vulto de Abacaxi se esgueirando pela casa, recebe uma notícia de morte de alguém. Foi assim quando morreu tio Zé e quando mamãe perdeu nosso irmão mais velho antes dele nascer. Entendeu agora?
A menina sentiu um calafrio. Um irmão que morreu antes de nascer! Ela nunca soubera disso.
Ficou algum tempo quieta. Depois disse para si mesma:
– Prefiro gatos...
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