Doces (e preciosas) lembranças do trem...

Pesquisador friburguense descobre verdadeiro manancial de documentos sobre a Leopoldina no Arquivo do Estado
sexta-feira, 05 de novembro de 2010
por Jornal A Voz da Serra

Por Dalva Ventura

Apaixonado pela memória de Nova Friburgo, Ronnie Peterson há dois anos vem se debruçando sobre a história do trem que cortava a cidade. Tudo começou quando ele fazia um inventário no Arquivo do Estado sobre o casario antigo. Ali encontrou, meio que por acaso, seis livros escritos pelos fiscais da Estrada de Ferro de Cantagalo. No total, quase 60 mil páginas de história. Uma preciosidade!

O material continha uma riqueza de detalhes impressionante: dados da estrada de ferro, seus lucros e prejuízos, indicação de todas as 25 locomotivas com os respectivos nomes, o custo de manutenção, as trocas de trilhos, as reformas das máquinas, a compra de carvão, os acidentes ocorridos, os ofícios trocados entre as estações e relatos nos mais diversos quesitos.

Quem conhece Ronnie já pode imaginar o que aconteceu a partir deste achado. Ele passou, é claro, a viajar ainda com mais frequência ao Rio de Janeiro para continuar suas pesquisas sobre o trem. O resultado ele apresentou recentemente, durante um painel no Instituto Nacional de Preservação Ferroviária (INPF).

Apesar de se concentrar no ramal de Nova Friburgo, o estudo de Ronnie aborda detalhes da chamada estrada de ferro Cantagalo-Barão de Nova Friburgo, chamando a atenção para sua importância, não só por levar e trazer pessoas, mas também pelo progresso que trouxe para a região. Basta registrar que antes do trem, Nova Friburgo ficava a cerca de quatro dias de viagem do Rio de Janeiro, por uma picada em meio a precipícios. Após este trajeto, era preciso pegar o vapor em Mendonça (atual Cachoeiras de Macacu), em direção a Niterói.

Construído pelo Barão de Nova Friburgo (Antônio Clemente Pinto), em 1860, o primeiro trecho da ferrovia ia de Porto das Caixas (atual Itaboraí) até Macuco. Quando o barão morreu, em 1869, a estrada de ferro já tinha autorização para seguir até Nova Friburgo, uma distância pequena – 39,4 quilômetros apenas – mas muito complicada por causa da subida da serra.

Um dos textos mais interessantes do painel apresentado por Ronnie, aliás, é o que conta as experiências que tiveram de ser feitas para o trem conseguir subir a serra. Na primeira vez, conta, o motor não aguentou e a locomotiva até explodiu. Além disso, todos os trilhos tiveram de ser trocados.

Trem contribuiu para modernizar a cidade

O filho do barão, Antônio Clemente Pinto Filho, assumiu o empreendimento, investindo nele todo o capital da família. Comprou máquinas da Inglaterra, trouxe novos tipos de trilhos, modificou todo o traçado da ferrovia e, não satisfeito, levou-a até Cantagalo. Nova Friburgo progredia a olhos vistos. A Rua General Argolo (atual Avenida Alberto Braune) foi nivelada para que a estrada de ferro fosse prolongada até Cantagalo.

Além disso, foi construída a Estação Friburgo, toda em estilo colonial, com um pórtico de três arcos, hall central decorado e repleto de janelas. A inauguração da ferrovia, no dia 18 de dezembro de 1873, contou, inclusive, com a presença do imperador D. Pedro e de sua família. Eles viajaram num vagão especial e depois de Nova Friburgo foram até a Fazenda de Banquete, que já tinha sua estação. Na época, porém, a estrada de ferro ainda não se chamava Leopoldina Railway, e sim Estrada de Ferro Cantagalo. Só virou Leopoldina quando foi vendida, em 1887.

Em 1935, contudo, a estação foi demolida e construída uma nova no mesmo local. Mais tarde, quando a estrada de ferro foi desativada, a estação foi transformada no Palácio Barão de Nova Friburgo, que até hoje é a sede do Executivo municipal.

Cinco anos antes do prazo previsto, o imperador decidiu entregar o ramal ao governo da Província, alegando que tinha gasto todo o seu patrimônio para fazer a estrada de ferro e não dispunha de mais recursos para mantê-la. “O imperador não foi bobo, não. Como tinha direito a uma multa rescisória, recebeu tudo o que investiu, com juros de 7%. Seus investimentos foram mesmo muito altos, mas prejuízo ele não teve, muito pelo contrário. Recuperou pelo menos o triplo do que investiu, e num prazo curtíssimo”, declarou Ronnie.

Ao contrário do que se pode imaginar, os acidentes na ferrovia eram constantes, principalmente colisões, tombamentos e atropelamentos. Houve, inclusive, alguns acidentes graves e com mortes. Isto, apesar do trem não andar muito rápido. Fora da cidade, nas retas, alcançava, no máximo, uns 30 quilômetros por hora. Quando subia a serra ou passava por dentro de Nova Friburgo, ia no máximo a uns dez quilômetros. “O trem era tão lento que em certos trechos alguns passageiros preferiam descer e vir a pé, pois assim chegavam primeiro”, conta Ronnie. Mesmo assim, a população reclamava da alta velocidade.

Vale lembrar que uma viagem de trem do Rio de Janeiro a Nova Friburgo, ou vice-versa, levava praticamente o dia inteiro. Teoricamente eram quatro horas, mas, na prática, levava muito mais do que isso, porque o trem quebrava muito, parava toda hora, descarrilhava, capotava, seus trilhos eram roubados, o carvão acabava e, por conta disso, era obrigado a ficar horas parado numa estação, até outra máquina buscar. Sem falar que a máquina esquentava toda hora (e era preciso esperar esfriar) e as peças quebravam muito.

A população nem sempre aceitava tudo isso de forma pacata. A história registra, inclusive, a explosão de uma bomba na estação de Bom Jardim, porque o trem estava demorando muito.

Todas as 25 máquinas da estrada de ferro tinham seu nome escrito na lateral. A que rodava em Nova Friburgo e, por isso mesmo, tornou-se a mais conhecida dos friburguenses, era a de número 22. Seu nome era Baronesa Laura, uma homenagem do barão à sua mãe. Foi ela, a Baronesa Laura, que mais tarde foi colocada na praça e, mais tarde ainda, destruída a golpes de maçarico. Mas esta já é outra história... Teve também a Nova Friburgo, a Conselheiro Paulino...

Os vagões carregavam 46 passageiros cada. Na primeira classe os bancos eram de madeira entrelaçada com fibras e, na comum, só de madeira. Em geral havia quatro vagões para passageiros e quatro para cargas em cada trem, além de dois especiais, um deles, inclusive, reservado à família imperial. Além de passageiros, o trem transportava animais, mercadorias diversas, café, flores (sobretudo orquídeas). Tinham vagões especiais para presos e até vagão-necrotério.

Num dos documentos Ronnie encontrou todas as medidas das locomotivas e dos vagões, o peso morto, quantas pessoas cabiam (46 por vagão) e descrições dos mesmos.

Até a década de 1930, a Estação Friburgo era usada tanto para cargas como para passageiros. Três anos depois era inaugurada a Estação de Cargas da Companhia Leopoldina, situada nas proximidades da Rua General Osório, onde, mais tarde, foi construído o 11º Batalhão de Polícia Militar. Ainda existem vestígios desta estação, que hoje é utilizada como departamento de relações públicas da PM. A parte da frente foi demolida, mas num cantinho do muro consta até hoje a palavra “Cargas”.

A estação de Riograndina, construída em 1876, é a que está em melhor estado de conservação. Conta, inclusive, com a casa do maquinista, o depósito e a ponte. Desde o governo passado ali funciona um Ponto de Cultura. Apesar do prédio ser tombado, recentemente uma família comprou a residência do fiscal da estação.

O triste fim da Baronesa Laura

Quando o trem passou pela última vez por Nova Friburgo – em 15 de julho de 1964 –, o então prefeito Heródoto Bento de Mello mandou que filmassem a cena para arquivar num futuro centro de preservação da memória de Nova Friburgo (o Pró-Memória não existia). “A gente acredita que essas cenas são aquelas em que o trem aparece com o Cinema Eldorado ao fundo, mas, como não têm data, é impossível ter certeza disso”, explica Ronnie.

Depois da linha ser extinta, a locomotiva 116, de saudosa memória, foi colocada na praça, também a pedido de Heródoto. Apesar de não passar de uma carcaça, o trem logo se tornou um atrativo da cidade, mas por pouco tempo. Dois anos depois, no dia 26 de outubro de 1967, o então prefeito Amâncio Mário de Azevedo ordenou que ela fosse retirada da praça.

O trem foi destruído a maçarico em pleno dia, na frente de toda a população, gerando um clima de revolta e algumas manifestações na tribuna da Câmara e nos noticiários de jornais do Rio. A revista O Cruzeiro, inclusive, chegou a noticiar o fato. Durante um ano o governo disse que traria uma nova locomotiva para colocar no lugar daquela, “que estava muito velha”, o que, como se sabe, não ocorreu. Infelizmente, pelo que se consta, não há registros da destruição da locomotiva. “Um fotógrafo local teria filmado a cena, mas este jamais confirmou a informação”, diz Ronnie.

Hoje, do patrimônio remanescente da estrada de ferro, resta apenas a estação de Riograndina, a antiga estação de passageiros (atual Prefeitura) e o prédio da estação de cargas, no batalhão da PM, além de não mais que uma dezena de imagens que contam a história da ferrovia na cidade e um filme que pode ser assistido no site da Fundação D. João VI (www.djoaovi.com.br), que mostra o trajeto do trem passando pela Avenida Alberto Braune. E só.

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