Multitude - 3 de abril.

Por João Clemente Moura
sexta-feira, 02 de abril de 2010
por Jornal A Voz da Serra

Reencontro

"Eu vim aqui porque

estava com saudades

daquele tempo"

Abri a porta com cuidado, mas, mesmo assim, quando ela se fechou foi tão forte que o sino bateu novamente. O lugar perto do canto estava vazio e então fui a sua direção. Sentei em uma cadeira e coloquei minhas coisas em outra. Se acaso me perguntassem o que me fazia lembrar daquele lugar, não hesitaria em responder: Clarice.

O pequeno e pouco frequentado café onde eu me encontrava se situava acima do nível da rua, só se viam ônibus e caminhões. Também era um lugar silencioso, não se ouvia o barulho dos carros. O mundo lá fora ficava assim, distante, como um filme, como um aquário.

Pedi um café simples, pensei em Clarice. Era a primeira vez que eu entrava naquele lugar sem ela. Ela se mudou havia três anos, foi trabalhar em São Paulo, nunca mais a vi.

Mas eis que, de súbito, como se a realidade lesse meus pensamentos, o sino bateu novamente e a figura que eu há muito tempo não via entrou. O mesmo olhar impassível, o mesmo jeito de arremessar sobre a mesa a bolsa. O corte de cabelo havia mudado.

Lá estava ela. Será que continua lendo Em Busca do Tempo Perdido? Ainda usa o mesmo perfume? Ainda ouve Secos e Molhados? Gosta de cappuccino? Será que se decepcionará com o meu ‘novo eu’? Ou, por outro lado, será que ela vai achar que ‘continuo na mesma’?

Nossos olhares enfim se cruzaram. Ela sorriu para mim e fui até a sua mesa. Esperei um abraço, mas ela permaneceu sentada e apenas estendeu a mão.

– Vinícius... Quanto tempo... - disse ela.

Eu não sabia muito bem o que responder, sua recepção fria me armou de receio. Pensei por um momento e da minha boca saiu apenas:

– E aí, Clarice?...

Ela continuou sorrindo para mim.

– Senta aqui na mesa. Quem diria... Você tem vindo aqui ainda? – perguntou ela.

– Na verdade, a última vez foi com você – respondi, um tanto constrangido.

– Que loucura... Milhões de anos que não venho nessa cidade – completou ela, sem muito entusiasmo. Pela primeira vez na vida pude perceber de maneira clara uma de suas características, e essa característica seguia inalterada ao longo dos anos: nada jamais parecia impressionar Clarice, nada era digno de exclamação.

Assoprei o café e tomei com medo de queimar a boca. Percebi, então, a razão inconsciente de ter ido ali: relembrar Clarice, reviver Clarice. Mas eu disse apenas:

– Vim porque estava com saudades daquele tempo.

O suco de laranja chegava à mesa. Ela agradeceu à garçonete e se pôs a olhar a paisagem pela janela, com a expressão ausente que lhe é própria.

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