Relembrando Ataulfo - 27 de fevereiro

Por Mario de Moraes
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010
por Jornal A Voz da Serra

Amélia ( Do antr. Amélia, do samba homônimo de autoria de Ataulfo Alves e Mário Lago ) S. f. Bras. Pop. Mulher que aceita toda sorte de privações e/ou vexames sem reclamar, por amor a seu homem.

Não conhecemos outra música popular brasileira que tenha se transformado num vocábulo do nosso idioma e conste do Aurélio. Mas Amélia está lá – no samba Ai, que saudades da Amélia –, símbolizando a mulher que a maioria dos homens gostaria de encontrar (ou serão todos ?), bem diferente da outra, cantada por mestre Ataulfo:

“Nunca vi fazer tanta exigência / Nem fazer o que você me faz / Você não sabe o que é consciência / Não vê que eu sou um pobre rapaz...”

Já a dedicada Amélia, “achava bonito não ter o que comer / E quando me via contrariado / Dizia : “Meu filho, o que se há de fazer?” / “Amélia não tinha a menor vaidade / Amélia é que era mulher de verdade.”

Até hoje, esse samba, lançado em 1942, está na mente de todos aqueles que gostam da MPB.

Um esquecido

Ataulfo Alves foi um dos maiores compositores populares brasileiros de todos os tempos. Infelizmente, a falada crítica especializada não lhe dá o devido valor, como faz com outros sambistas da mesma geração, como Ismael Silva, Cartola e Nelson Cavaquinho.

Seria enfadonho enumerar aqui os inúmeros e até hoje lembrados sucessos de Ataulfo, como Pois é , de 1955: “Pois é, falaram tanto / Que dessa vez a morena foi embora / Disseram que ela era a maioral / E que eu é que não soube aproveitar / Endeusaram a morena tanto, tanto / Que ela resolveu me abandonar.” Apenas um trecho, mas que comprova a beleza das letras de Ataulfo Alves. Mais um exemplo ? Pois vamos lá, apresentando apenas um trecho de Na cadência do samba, de 1961, parceria com Paulo Costa: “Quero morrer numa batucada de bamba / Na cadência bonita do samba / Mas o meu nome / Ninguém vai jogar na lama / Diz o dito popular : / “Morre o homem fica a fama.”

Razão tinha o saudoso Ary Barroso quando, nos seus programas de calouros, indagava o nome do autor da música que ia ser interpretada. Se o candidato não sabia, era gongado. Com Ataulfo Alves isso acontece comumente. A maioria sabe de cor as letras dos seus sambas, mas desconhece que ele é o autor.

Pai morre de tiro mau dado

Ataulfo Alves de Souza nasceu a 2 de maio de 1909, na fazenda Cachoeiro, no município mineiro de Miraí, na Zona da Mata (aliás, uma das suas mais belas composições é dedicada a essa cidade e termina com uma frase que ficou famosa: “eu era feliz e não sabia”). Seus pais eram Severino e Matilde Alves de Sousa. O pai de Ataulfo era conhecido como capitão Severino. O porquê do apelido a história não registra, mas informa que ele, além de repentista, tocava muito bem violão e harmônica. Cantar era com ele mesmo. Podia a festança entrar madrugada adentro, que o gogó do Severino estava sempre azeitado.E não raramente o menino Ataulfo, com oito anos de idade, participava do fandango.

De certa feita, quando experimentava uma arma de fogo, desastradamente Severino detonou-a e a bala atingiu um dos seus dedos. Ele não deu importância, o ferimento infeccionou e, no dia seguinte, após uma colheita de café, bem suado, pegou um bruta aguaceiro. Ninguém diagnosticou, mas deve ter contraído pneumonia. E lá se foi o capitão Severino. Era 1919 e Ataulfo tinha10 anos de idade.

Viagem para o Rio

Além de Ataulfo, seu Severino deixou mais cinco filhos – um menino e quatro meninas – e um legado musical que o futuro autor de Amélia se apressou a herdar. Mas a vida continuava e era preciso levar pão à mesa humilde. Aos 11 anos, Ataulfo começou a trabalhar: leiteiro, jornaleiro, carregador de malas, tocador de gado, engraxate.

Em 1927, com 18 anos, viajou para o Rio de Janeiro à convite do médico Afrânio Moreira de Resende, que fora amigo do seu pai, indo trabalhar no seu escritório, à Rua da Assembléia, 34. Depois, empregou-se como ajudante de farmácia, na Farmácia e Drogaria do Povo, à Rua São José, 61, de Samuel Antunes & Cia. E foi nesse emprego que ele conheceu Carmen Miranda, amiga das filhas do dono da firma. Muito dedicado ao trabalho, Ataulfo terminou prático de farmácia.

Aqui vale a pena saber como o jornalista Jota Efegê, já falecido, outro bamba em MPB, recorda o fato em seu livro Figuras e Coisas da Música Popular Brasileira. Ele conta que Ataulfo Alves, sem nenhum conhecimento de farmacologia, apenas atendia ao balcão, pregava rótulos nas poções e nos xaropes (inclusive as clássicas etiquetas “agite antes de usar”), mas já transava com o samba carioca. Lembra Jota Efegê: “Morando no bairro do Rio Comprido, era integrante do bloco (ou escola de samba) Fale Quem Quiser, que arregimentava gente do Morro do Querosene, da Praça Condessa Paulo de Frontin e ruas adjacentes. Ali conheceu Bide (Alcebíades Barcelos), Getúlio Marinho (Amor) e outros do mesmo naipe. Ainda não havia entrado num estúdio de gravação, nem tivera seu nome gravado na etiqueta de uma bolacha (disco ), mas o Fale Quem Quiser cantava suas composições.

Além de compor, Ataulfo tocava violão, cavaquinho e bandolim e ocupava o cargo de diretor de harmonia do Fale Quem Quiser. Para o dedicado pesquisador da MPB, Ary Vasconcelos, já falecido, apesar de várias versões, a verdade é que, quem descobriu Ataulfo Alves foi mesmo o compositor Alcebíades Barcelos. Em 1933, levou-o à gravadora Victor.

Carmen entra no circuito

Mister Evans, diretor da Victor, gostou do que ouviu e – suprema glória ! – chamou Carmen Miranda, que se lembrou dele da Drogaria do Povo. Logo no ano seguinte, a pequena notável gravava Tempo perdido, de Ataulfo Alves. O sucesso, porém, só viria em 1935, com Saudades do meu barracão, gravado por Floriano Belham e pelo Bando da Lua – conjunto que terminaria famoso no Brasil e nos Estados Unidos, graças a Carmen Miranda. 1936 marca outro êxito de Ataulfo: Saudade dela, gravado pela voz do grande Silvio Caldas.

De 1940 é Seu Oscar, em parceria com Wilson Baptista. Apenas para recordar: “Ó, seu Oscar, está fazendo meia hora / Que sua mulher foi embora / Um bilhete deixou / O bilhete assim dizia: / ‘Não posso mais, eu quero é viver na orgia’.”

Muitos elogiavam a voz de Ataulfo. Isto o animou, em 1941, a propor a Herr Strauss, o mandachuva da Odeon, a deixá-lo gravar um disco. O homem concordou e Ataulfo gravou Leva meu samba, música de sua autoria. Um trecho, apenas: “Leva meu samba, meu mensageiro / Este recado para o meu amor primeiro / Vai dizer que ela é a razão dos meus ais / Não, não posso mais.”

Do outro lado da bolacha, o samba Alegria na casa de pobre, samba de Ataulfo e Abel Neto, em que ele canta acompanhado pela Escola de Samba da Cidade.

O samba que ninguém quis

No ano seguinte, em 1942, Ataulfo Alves ofereceu um dos seus sambas – em parceria com o jornalista Mário Lago – a diversos cantores, mas nenhum deles se interessou em gravá-lo. Com muita fé no produto, Ataulfo resolveu ele mesmo cantar Amélia, que se transformaria no maior sucesso da sua carreira. Em entrevista ao Jornal do Brasil o saudoso Mário Lago contou que Amélia lhe rendeu inimizades: “A ala mais radical do feminismo até hoje não me perdoa. Mas o fundamental é que a Amélia não era chata”. E lembra que compôs a letra dessa música a partir do irmão da cantora Aracy de Almeida, o baterista Almeidinha, que falava de uma tal de Amélia, que lavava, passava e cozinhava. Na face B, Ataulfo gravou o samba de Alcebíades Barcelos e Cartola Não posso viver sem ela, acompanhado por sua Academia de Samba.

Amélia consagrou Ataulfo definitivamente, não só como compositor, mas também como cantor. Resultado: assinou um contrato de exclusividade com a Odeon. A partir daí, ele substituiu a turma da Academia pelo coro de três belas e sensuais cantoras, batizadas por Pedro Caetano como pastoras. Seus detratores dizem que ele tratava muito mal as suas acompanhantes, sendo exigente e intolerante, vivendo a repreendê-las.

É de 1944, o samba Atire a primeira pedra, ainda em parceria com Mário Lago, que diz de início: “Covarde sei que me podem chamar/ Porque não calo no peito essa dor / Atire a primeira pedra, ai, ai, ai / Aquele que não sofreu de amor.”

Pancetti pinta o samba

Segue-se um período em que o samba anda bem por baixo, mas em 1954, Ataulfo lança o Pois é, no show O samba nasce do coração, na boate Casablanca, que tem retumbante sucesso. O êxito é tão grande, que, em 1956, Pancetti pinta um quadro inspirado nessa música e Ataulfo, em retribuição, dedica-lhe o samba Lagoa serena.

Daí em diante, é uma enxurrada de sucessos, como Mulata assanhada, do mesmo ano de 1956, cujo trecho damos agora: “Oi, mulata assanhada / Que passa com graça / Fazendo pirraça / Fingindo inocente / Tirando o sossego da gente.” Ou o já citado Na cadência do samba, de 1961. É de 1967 o gostoso Laranja madura: “Laranja madura, na beira da estrada / Está bichada, Zé, / Ou tem marimbondo no pé / Você diz que me dá casa e comida (...) /O que é que há ? / Tanta bondade / Que me faz desconfiar.”

Em 1961, Ataulfo Alves viaja para a Europa, numa caravana musical comandada por Humberto Teixeira e, em 1966, sem as pastoras, segue sozinho para o Festival de Arte Negra, em Dacar, África.

Ataulfo Júnior glorifica o pai

Ataulfo foi casado com Judite Alves de Sousa e o casal teve quatro filhos: Adelino, Adeilton, Matilde e Ataulfo, todos com tendência musical O caçula Ataulfo Alves Jr., além de ser um bom cantor – nos anos 70 fez sucesso com a música Canto de amor –, sempre lutou para colocar o pai no pedestal que merece, realizando inúmeros shows, divulgando a obra do pai.

Segundo o cantor Roberto Silva, o príncipe do samba, a principal razão para terem esquecido Ataulfo prende-se, principalmente, ao fato de que “havia muito ciúme de outros autores que estavam começando na mesma época e não tinham o mesmo desenvolvimento musical dele. Quase tudo que Ataulfo fazia era sucesso, por isso acabou sendo tão invejado.” Além disso surgiram outros e mais modernos ritmos, muitos vindos do exterior, e o samba vem sendo mandado pra escanteio.

Um dos dez mais de Ibrahim

Ataulfo era um homem elegante, que fazia questão de vestir-se na última moda. Tanto que o saudoso Ibrahim Sued o incluiu na sua lista anual dos dez mais, publicada em sua coluna em O Globo. Ataulfo foi sócio e membro permanente do Conselho Deliberativo da União Brasileira de Compositores (UBC), e presidente da Associação Defensora de Direitos Artísticos e Fonomecânicos (Addaf). Em Miraí há uma rua com o seu nome.

Vale aqui um inusitado registro. Por três vezes, Ataulfo teve que recorrer aos préstimos dos bombeiros, para safar-se da mesma e ridícula situação. A primeira, aconteceu no dia 7 de janeiro de 1963. Na época ele já era presidente da Addaf cujos escritórios ficavam no 3º andar do prédio da carioca Rua Visconde de Inhaúma, 107. Absorvido com a papelada, Ataulfo não percebeu que estava sozinho e trancado no edifício. Telefonou para os bombeiros, estes vieram, estenderam-lhe uma escada e, saindo pela janela do escritório, Ataulfo alcançou a rua. Por incrível que pareça, houve uma segunda e uma terceira vez, nas mesmas circunstâncias, e novamente os bombeiros o retiraram do mesmo modo. Tudo porque Ataulfo, confiando no porteiro do prédio, nunca mandou fazer uma cópia da chave do portão principal.

Ataulfo Alves faleceu no dia 20 de abril de 1969, de hemorragia interna, após cirurgia para eliminar uma úlcera estomacal.

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