“Secuma-cunéque!
Samalequento contínuo!
Levanta-ta! É a hora mais gostosa!
É a hora de-de des-morrer!
Aríocheee, Caracu e-a!
Sangala!”
O olho aceso, teimoso, vermelho, cadente, acetonado, primariamente questionador, investigava da mesma forma que havia feito mais de duas mil vezes antes, o cenário do quadro de Ludovico, o Burguês. Recoberto pela poeira de batalhas que não havia lutado, com o sangue de gente que não conhecia a lhe escorrer sob os pés, molhado pelas lágrimas secas, cujas razões já tinha arrefecido nos corações e almas de seus donos, Justanésio, o dono do jornal O Monteiro (gentilmente apelidado pelos mais críticos de Montacábio), ouvia as vozes dos jornais amontoados ao seu redor: – Me deixa em paz! Me deixa em paz! Me deixa em paz!
Paz, paz, paz... Era tudo o que ele queria, mas como? Como ter paz, se não podia desvendar o maior dos mistérios? O quadro inacabado de Ludovico, a cena paralisada, inalcançável para qualquer um que não tivesse acesso à mente do autor. Por mais que tentasse, nunca iria descobrir o objetivo do louco pintor de seis dedos, ao retratar o mesmo homem, espectral, movimentando-se por uma casa infinita, descendo as escadas, dançando no teto, abraçando carinhosamente a mulher no fogão (enquanto sua sombra enfia uma faca nas costas da mesma), finalmente saltando no espaço vazio, jamais desenhado, morto e aberto a interpretações, a porta que dava para o nada, a janela do quadro que não mostrava nenhuma paixão. Havia dias em que Justanésio acreditava que, na verdade, Ludovico havia, sim, terminado seu quadro, mas também tinha deixado aqueles espaços em branco com um propósito sinistro, o de enlouquecer quem os olhasse, porque ele sabia que aquilo não poderia ser obra do acaso, aquilo era como o livro em branco cuja página 37 lida ao meio-dia dum dia de sol de uma terça-feira segunda de um mês par, que o mataria se estivesse sob o céu vermelho duma cidadezinha russa.
Como poderia dar paz aos fantasmas aquecidos dos jornais, se ele mesmo não tinha? Não podia, nem aceitava que tivesse de sofrer sozinho, por isso confinava em sua esfera amaldiçoada, quantos mais ele pudesse capturar.
Sem decifrar o código do quadro, sentia que jamais decifraria código algum. Por isso, fundara o jornal em primeiro lugar. Queria decifrar todos os códigos ao seu redor. Mesmo que fosse numa cidade onde as poças d’água antes e após cada chuva, fossem familiares a todos os moradores.
O prêmio tão almejado nunca viria, tinha certeza, mas ainda assim, perdia-se em meio a jogos, cujas razões e regras desconhecia.
Os detalhes ganhavam tanta importância, que esquecia de si mesmo. Uma pinta que lhe nascesse na face, só era reconhecida meses depois. E ainda assim, com desconfiança. Por que não havia notado seu quieto nascimento, seu arrastar sorrateiro das entranhas até a calejada face? Tudo ao seu redor era tão familiar, que as novidades, tão discrepantes, não eram vistas como anomalias, até que fosse tarde demais.
Mesmo o fato de que levitava, só foi notado alguns dias depois, quando lia a manchete do próprio jornal e percebia que seu nome estava entre os que flutuavam e causavam um surto misto de pânico e fé pela cidade, fazendo com que legiões de peregrinos chegassem a toda hora.
- Isso é um erro.
Deveria haver um sorriso, um sinal de felicidade, um pingo de prazer... Algum contentamento. No entanto, apenas a sensação de vazio persiste. E se reflete em toda a cidade.
- Há algo de errado.
Em frente aos recentes acontecimentos (dentro e fora de sua alma), o aniversário da cidade passaria em branco. Não fosse a edição especial, preparada com meses de ante-mão (e que quase não seria vendida), o jornal estaria paralisado. Sem concentração para nada, nem beber, Justanésio conseguia.
Mas podia entender o álcool. Podia entender quem bebesse. As evasivas morais, os contornos vitais à que se sujeitavam... Tudo era posto de lado. Todo o oxigênio era convertido em uma ilusão. A felicidade e as risadas provocadas outrora, eram convertidas em algo inferior. Se era possível ascender para baixo, então era assim que se poderia conseguir tal façanha.
- Não faça perguntas.
O paraíso é dos tolos. Justanésio amarrou-se na porta e observou a multidão que se dirigia para a igreja. O sol ainda nem havia nascido, e uma multidão já se formava em frente à igreja.
Justanésio havia recebido um convite com timbre da prefeitura, para que também comparecesse à missa - em local de destaque, junto aos outros que haviam logrado êxito em burlar as leis da gravidade. Mas ele não sabia se poderia ir (embora, de uma forma ou de outra, um carro viesse lhe buscar, dentro de poucos minutos).
Se lhe perguntassem o que gostaria de ter, de verdade, diria que era a visão mais aguçada. Seus olhos estavam mais fracos, débeis com o passar dos anos. Voar não significou nada. Além do mais, havia o quadro de Ludovico, ao qual pouca ou nenhuma atenção havia dado nos últimos dias.
- Aceite o que lhe for ofertado.
O que havia para se perder? Os pensamentos de Justanésio não andavam muito acertados. As idéias bailavam diante de seus olhos semi-cerrados, cortando-lhe o sono, imobilizando-lhe o despertar, deixando-o num estado de zumbificação. Com os sentimentos atrofiados, viver era apenas mais um fato corriqueiro. No entanto, nem mesmo investigar era-lhe algo possível, agora. Sem a sua supervisão, o jornal iria a falência - e ele não se importava com isso.
- Me deixa em paz!
Os jornais já não gritavam em coro, na sua direção. Agora, apenas uma única voz, solitária clamava por paz. Vinha da edição do dia anterior, que noticiava os mais novos elementos voadores da cidade. Era o seu próprio nome que pedia clemência.
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