A vida, ainda que teimemos em crer que não, é muito mais do que um amontoado de situações desconexas – basta-me sentar a guisa de descanso, arrancando carrapatos das canelas, observando uma mosca que dobra de tamanho em sua sombra e nada faz além de rodopiar a lâmpada, para verificar que estou com a razão. São destes detalhes, tão desleixados, abandonados na lembrança, que construímos nossas porções de realidade. É assim que caminhamos junto a muros durante a madrugada e lamentamos algum amor mal planejado e pessimamente realizado, que nos corrói o estômago e nos faz ter ganas de entregar os pontos; é assim que pautamos a realidade, nesses pequenos remedos.
A história que começa a ser publicada nesta edição de A VOZ DA SERRA LIGHT é um desses pontos de aglutinação que nos dão o toque da realidade. Escrita em um curto período de tempo no princípio deste ano de 2009, Pássaros Artificiais deve ser entendida como um jogo dos quais são completamente indissociáveis os traços de Antonio Eder, que em 2003 desenhou-me uma outra hq com deus e o diabo envoltos em outros jogos, de baralhos, e que n´outra oportunidade chegou a tracejar uma outra história minha, A Fera de Macuco, que em algum momento futuro ainda será contada novamente, espero eu.
O jogo proposto por esse meu delírio criativo (compartilhado de imediato com o amigo Eder, jamais visto, presente na distante Curitiba), no entanto não será inteiramente conferido pelos pacientes leitores desta coluna (que também voltarão os olhos, espero eu, a partir desta semana, para a página onde minha sofrida história passa a ser publicada semanalmente), que só a conferirão em metade. Mas, antes que se inquietem, explico: mais do que a irritação de terem uma história pela metade, deviam é de se encrespar com ela lhes ser passada assim, em conta-gotas. Mas nem isso poderão fazer, porque esta história, ainda que pela metade, ainda que espalhada ao longo de dezesseis longas semanas, estará inteira. A situação é simples e a explicarei a seguir, com a promessa de que não se assemelhará a um manual de instruções para a mesma, pois não serei eu pedante a ponto de lhes dizer com é que deverá de ser lida esta coisinha extravagante que oferecemos aqui.
A história, em seu formato anacrológico, desconexo, passível de interpretações e caminhos, surgiu-me como um desafio. Pretendia escrever uma história que merecesse ser publicada em papel, como um gibi comum, mas que desafiasse o leitor, que se propusesse a múltiplas leituras. A minha ideia era que após a primeira leitura, esse eventual leitor fosse tomado por uma síncope e destruísse a revista, a começar pelos grampos, de onde ele descobriria que duas outras histórias poderiam brotar. Se a primeira leitura seguisse a ordem correta (e o leitor não fosse compulsivo ou apressado), então ela seria da página 1 até a 32. Já com os grampos soltos, o leitor estaria diante de outras narrativas (essencialmente as mesmas, com os mesmos personagens, mas outras histórias). Assim, a ordem de leitura passaria a ser 32-1, 30-3, 28-5 e assim por diante, e 2-31, 4-29, 6-27...
A proposta então passa a ser ainda mais ameaçadora, tanto para a saúde mental do leitor, quanto para a minha, porque se seguir essa proposta, o público pode deletar páginas, criar novos diálogos, interferir como quiser e, se tudo der certo, criar também. Metas elevadas? Talvez. Mas por que não compartilhar de algo que amo, que é criar? Não nego influências, claro. Estão todos aí: Alan Moore com sua 32ª edição de Promethea, Variante Gotemburgo de Esdras do Nascimento, O Jogo da Amarelinha de Julio Cortazar e os cut-ups de William Burroughs.
Quanto à trama em si, creio que ela se revelará por si só. Leiam. A princípio, apenas uma das formas de leitura será vista aqui (a que começa na página 32 e segue até a 15), mas pode haver alterações. Agora, como de resto, como se faz com a vida, basta esperar que as páginas restantes cheguem e a história tome, enfim, uma forma que se baste, ou que estremeça, se sacuda para além das grades e ganhe novas formas a partir de outros olhares. Mas, por agora, fique com o sorriso que vai no último quadrinho.
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