Dentro do ônibus, à noite, sentado no corredor à meia luz dos postes que passam lá fora, Hamori identifica seu próprio reflexo na janela. Tremelicando, como se fosse cair no primeiro buraco, sua contraparte vítrea flutua do outro lado do espelho sujo de poeira, levanta-se e toca a janela. Primeiro com um dedo, logo com a mão toda, Hamori repete os movimentos do antípoda. Pega a passagem, confere o destino programado e vira-a na direção do reflexo. Na certeza de que o outro vai para o mesmo lugar, acomoda-se e mergulha no sono. É tão desinteressante que não vale a pena puxar papo.
No próximo ponto, o grupo sabe que terá de descer. Bêbados, os jovens se amontoam uns sobre os outros, colocam braços e cabeças para fora, xingam os pedestres e, no último banco, um deles acende um cigarro. São advertidos pelo cobrador por mais de uma vez. Logo, é o motorista que para o ônibus, caminha na direção dos garotos, segurando o cinto como que para soltá-lo das calças, inconscientemente agindo como pai, ameaçando uma surra. Eles silenciam com a promessa do motorista de que, se não calassem a boca, teriam que descer. Mas, é claro, a farra não pode parar e finalmente são convidados a descer no próximo ponto, em algum lugar no meio da serra. Descem no ponto, abaixando as calças, mostrando a bunda pros passageiros, rindo e começando a se perguntar como diabos farão pra chegar em casa, já que o dinheiro acabou. Um dos rapazes, o mais novo deles, saca uma última garrafa de sua mochila.
Mecânico tudo isso. Os trocos, as marchas que passam, o parar nos pontos, o sobe e desce dos passageiros. Leonel toma o ônibus todos os dias. Senta-se sempre no mesmo lugar, oitava cadeira de trás pra frente, na janela. Ele sobe na rodoviária, segue até o ponto final e retorna. Sempre no mesmo horário. Motoristas, fiscais, até outros passageiros já tentaram dissuadir o velho desta mania. Ele cataloga tudo, sempre em silêncio, observa quem desce e sobe, onde e quando. Um dia desses, ele sabe, terá que morrer. Como ninguém, nem ele, sabe o que esse sujeito faz da vida quando não está sentado no ônibus, todos esperam que ele ao menos bata as botas durante uma viagem. Assim as coisas ficariam mais animadas.
O trabalho de Macedo é raspar das rodas dos ônibus os bichinhos que são atropelados durante a viagem. Macedo gosta disso, de arrancar pedacinhos de filhotes de gambás que ficam agarrados à borracha. Em seu primeiro dia vomitou ao encontrar um cão quase inteiro, preso sob o ônibus. Nos anos que se seguiram, estava tão afeiçoado a seu ofício, que começara uma coleção. Na parede de seu quarto, peles, ossos e dentes se espalham pelas paredes, enfeitando o ambiente. Mas seu item preferido é um cinzeiro feito com o casco de uma tartaruga. Ele não fuma, mas adora cuspir lá.
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