Vitória
Não estávamos com muita pressa. No aparelho de som do carro tocava o disco do MGMT, que havia sido lançado no início do ano passado, mas que chamou minha atenção só mais tarde, bem aos pouquinhos, terminando numa completa obssessão. Meu amigo ouvia o disco pela primeira vez e achava bacana. Num determinado momento, porém, ele ficou sério, apontou para a frente e disse: “Olha lá, vai pegar! Ele não vai parar não!”.
Era uma turma de cachorros que atravessava a rua. O carro na nossa frente acabou por acertar um deles, fazendo o bicho rolar por entre as rodas. Encostei no meio-fio. Vendo um líquido viscoso esparramado na rua, julguei que aquela fêmea estivesse morta, mas não: eram apenas fezes com urina. O olhar dela também parecia de morta.
Nós rodamos a cidade até encontrar uma veterinária aberta. Não tínhamos dinheiro para pagar o serviço e meu amigo então decidiu deixar o seu palmtop como garantia, causando certo constrangimento entre o pessoal da veterinária.
“Mas a gente não pode simplesmente devolvê-la para a rua”, disse-me ele mais tarde. Concordei: nosso destino havia se encontrado com o da pequena cachorra, nos sentíamos responsáveis por ela. Depois de passar a noite na veterinária, ela foi para a minha casa, para curar sua bacia quebrada, tendo que ficar em repouso por quinze dias, tempo considerável para eu buscar um lugar para ela ficar. Parando antes na farmácia para comprar seus remédios, vi que na receita médica o veterinário tinha colocado lá: “Paciente: Vitória”. Perfeito.
No canil, Vitória chorou a noite inteira, todas as noites. Um lamento ininterrupto que beirava o insuportável. Os quinze dias se passaram sem que aparecesse um dono para ela, sendo que eu não podia soltá-la no jardim porque meus cachorros simplesmente matariam ela. Depois de um mês eu passei a deixar a porta do canil aberta, mas mesmo assim ela não saía de lá. Foi necessário mais um mês para que ela começasse a se arriscar um pouco pelo jardim, voltando correndo para o canil ao primeiro sinal de presença humana. À noite ela continuava chorando sem parar. Aquela cachorra deveria estar sofrendo muito, seu uivo era mais um grito melancólico por liberdade do que qualquer outra coisa. Ela jamais aceitou comida na boca ou qualquer forma de carinho. Me sentia como se, aos olhos dela, eu fosse um sequestrador com pena da sua vítima. Depois percebi que Vitória jamais iria se domesticar, jamais iria se acostumar com coisa ruim, mas eu não tinha coragem de soltá-la na rua, pois ainda tinha esperança de que um dia ela fosse gostar de mim ou de que eu achasse um sítio para ela poder correr solta. Nada disso aconteceu.
Abri o portão. Vitória não hesitou e correu com todas as suas forças para fora da minha casa, subindo a rua sem diminuir a velocidade, sem olhar para trás. Nunca mais a vi. Eu tenho um quadro de pescadores numa praia. O cachorro é igualzinho a ela. Andando por aí, de vez em quando eu vejo um vira-lata e, por um breve segundo, acho que é a Vitória. É uma outra versão, afinal.
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