O final coroava o topo da página.
O momento mais recompensador em qualquer de seus trabalhos. Mas faltava algo, o restante da página em branco – assustador. Mais do que isso, a felicidade de terminar esse trabalho só duraria essa noite, o dia seguinte lhe reservava um novo vazio, uma nova-velha conhecida dor, que agora, ele sabia muito bem de onde vinha.
Não poderia abandonar aquele trabalho. E não era porque se importava com os personagens criados por ele; que se danassem os personagens! O que o incomodava é que de todo o esforço, de todo o sangue derramado, de toda a vida que ele renegara nesses treze meses de trabalho, o único momento que realmente valia a pena, era aquele: o final.
Todos os eventos posteriores, as mulheres, a extensa divulgação, os elogios, o reconhecimento de seu talento... Tudo servia de força-motriz para que voltasse para o teclado velho e sujo de suor, onde passara metade de sua vida, onde tudo o que realmente importava para ele, havia começado.
Pensou em adiar o ponto final por uns dias, talvez, estender um pouco mais a história. Mas era impossível, estava tudo ali, as formigas jorravam de suas mãos diretamente para o texto, transformando-se em mortíferas letras, dedicadas a implacavelmente selar o destino de cada um dos personagens. Sabia que aquela inspiração violenta era definitiva, adiá-la era o mesmo que irritá-la. E a conhecia suficientemente bem, para saber que não deveria irritá-la.
Não se mexe com o desconhecido, menos ainda com o desconhecido familiar. E não há fera mais desconhecida que a ideia.
Incapaz de lidar com esse sentimento, essa sensação nostálgica (onde poderia visitar lugares e períodos dos quais nunca ouvira falar), desistiu. Antes mesmo do ponto final, decidiu por abandonar tudo. Colocou fogo no trabalho por terminar e fugiu de uma casa onde vivia sozinho, fazia mais de oito anos.
Fugir. Para onde? Para quê? Para quem? Para descobrir tais respostas, ele escrevia. Em sua solidão, seu autoimposto exílio, a resposta esteve sempre com ele.
Era para ele mesmo que ele fugia. Para todas as perguntas, a resposta era apenas uma: para ele mesmo.
A respiração denunciava incerteza.
Iniciar um romance com um personagem sem nome, de espírito inquieto e nenhuma capacidade para lidar com aqueles de sua espécie. Seria um autorretrato? Um romance destituído de beleza, sem nenhum contato com outros seres humanos, sem nenhum embelezamento natural, descrições de ambientes ou lusco-fuscos literários. Apenas alguém procurando por algo.
Um pintor comendo o próprio autorretrato, onde ele é visto comendo o próprio autorretrato. Ao infinito.
Algo que é revelado ao leitor, desde a primeira página, o que é.
- Eu sou apenas um jogo, não é?
- Não, você é um personagem.
- É mais do que isso. Eu sou fruto de sua vontade. Não tenho vida própria. Sou um cachorrinho obediente. No momento, estou no ponto de ônibus, esperando por algo, alguém ou alguma coisa que eu não sei o que é. Imagino que você saiba.
- Você também é um escritor. Imagine.
- Não. Desisti disso. Quero casa, família feliz (mulher organizada, filhos sorridentes), um emprego comum. Estava pensando em algo simples, talvez um vendedor. Nunca mais trabalharia com a imaginação, por mais que ficasse tentado.
- Se é o que você quer, por que não faz?
- Porque essa decisão não iria afetar somente a mim. Você teria de escrever sobre isso, teria de modelar as pessoas com as quais eu teria de lidar, teria de me fazer feliz. E você não conseguiria. Não sabe o que é ser feliz.
- Eu...
- Você também é só mais um personagem.
O escritor abaixou a cabeça, largou do trabalho por um segundo e foi para a janela. (Essas palavras, só se escreveriam, muito mais tarde.)
Uma parede cinza, pesada e barulhenta se formava na linha tortuosa do horizonte. Pensou que as chuvas haviam cessado, já era hora de um pouco de paz, um pouco de sol. Talvez, um fim de semana, um domingo a tarde que fosse, com os poucos amigos, bebendo numa cachoeira, ouvindo música.
Era pedir demais? Sentiriam as outras pessoas, a mesma calamitosa tempestade em seus corações?
Sim, haveriam de sentir... Mas que lhe importava? Eram o seu coração e mente que se encontravam em polvorosa, destruídos, nocauteados, presos por obrigações que ele mal compreendia.
- Você está escondendo toda a sua dor e tristeza nessas páginas. Poucos são capazes de trancar os seus sentimentos, assim. E de jogar a chave fora, como você faz.
- Eu tenho esse direito.
- Você também tem o direito de viver. E ambos sabemos que você não fez muito disso em sua vida.
- Você está me acusando de covarde.
- Você está falando isso. Tudo isso. Mais do que suas mãos e sanidade, você entregou até mesmo o seu direito de ser feliz.
- Do que está falando?
- Está é a sua forma de encarar o espelho. Você não é uma estátua, o que acontece ao seu redor, também te afeta. Por mais que você negue.
- Eu nunca fui bom em diálogos de qualquer forma.
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