Estive à cata de certas respostas por um longo período de minha vida. Trombei com as mais interessantes pessoas, nos mais decadentes lugares. Sonhei com cidades de prata, enquanto tiritava sob o frio mais azul.
De minhas andanças coletei casos interessantes. Desde o homem que, sufocado pela fumaça do charuto, teve a alma inadvertidamente sugada pelo filho que lhe socorria num boca a boca, até viúvas negras que cerziam em sangue e pus as pálpebras marcadas de seus recém bem-encomendados maridos.
Fui, no entanto, um apaixonado por situações ordinárias. Meu primeiro contato com Zacarias foi numa rua qualquer de Tanger. Notei-o à distância, destacando-se entre mantas, toucas e camisas fechadas até o pescoço. Com o calor penetrando-me até a alma, pus-me a seu lado e, de súbito, acabei numa longa fila. Como que hipnotizados, milhares de fieis caminhavam sob o sol, mal-alimentados, sempre acesos. Contagiei-me naquela força massiva, deixei-me levar naquela onda de fé, não só por curiosidade, mas por sentir-me, há muito, em constante estado de possessão. Embora o dia estivesse magnífico, subiam as escadas mais íngremes, corriam sem se cansar, moviam-se como uma enorme onda.
E sempre com Zacarias a meu lado. E eu, eu não ia nem alegre nem triste, ia com meu casaco azul sob o braço, presente de uma amiga, que anos depois se perdeu, esquecido para sempre num metrô em Londres.
Ao cabo do que poderiam ter sido dias ou horas, Zacarias tomou-me pelo braço, e olhando pela primeira vez para mim, disse-me que era aquele o momento em que deveríamos sair da fila. Daquele momento em diante construiríamos nosso próprio caminho.
“Que é pela esquerda”, disse, antes de sair correndo, rindo.
Eu o segui por alguns metros, até que ele parou diante de uma porta. Sentindo sede, fome e dificuldade para respirar, parei a seu lado e esperei. Após alguns instantes ele bateu palmas e uma chave voou pela janela acima da porta e quase que me acerta a cabeça. “Sê bem-vinda a meu lar.”
O lugar, timidamente decorado, continha apenas um exagero: fotografias. Milhares delas, espalhadas pelas paredes, amontoadas, sujas e velhas, confundidas pelo tempo, sobrepostas por outras, tão sujas quanto, mas ainda assim, definitivamente mais novas.
Zacarias, que nesse momento ainda nem havia se apresentado, conduziu-me até um cômodo nos fundos – o tempo todo eu observando, esperando encontrar quem havia lhe jogado a chave momentos atrás.
Acompanhando Zacarias até seu quarto dos fundos, percebi que ainda me encontrava sob o efeito da multidão. Do contrário, jamais teria ido tão longe em companhia de um desconhecido. Logo percebi que ele me traía, buscava algo de mim. Talvez, até, mais do que eu buscava nele. E despedaça-me o coração, neste momento, tanto tempo depois, imaginar que eu não poderia esperar ou buscar nada de alguém como Zacarias.
Chegamos a seu quarto, onde apenas um velho colchão resistia ao lado de uma estante improvisada. Ele, então, pegou um livro da estante e me mostrou certa página. “Leia, por favor. Em voz alta.”
Era um conto sinistro, em que, se estou bem certo, um garoto solitário domesticava avestruzes para seu bel-prazer, comendo-lhes os ovos e cegando-os em sacos negros, até que fossem tão dóceis e frágeis quanto galinhas num galinheiro. Por fim, os amáveis pássaros o mataram num bem-esquematizado plano de vingança, cujo desenrolar fiquei sem saber, pois Zacarias fechou-me o livro ainda nas mãos.
“Muito obrigado. Amanhã outro virá para ler a próxima página. E eu me esquecerei completamente de você.”
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