Notas de um moleque desocupado - 21 de fevereiro

Por Daniel Frazão
sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009
por Jornal A Voz da Serra

Eu odiava, realmente odiava tomar banho. Por isso, não tomava. Quantos anos eu tinha? Não lembro, mas era criança. Uma vez passei mais de quatro meses sem tomar banho. Nada me orgulhou tanto. Depois de quatro meses e pouco, fizeram uma espécie de intervenção; reuniram-se num canto e esperaram que eu aparecesse para me atirar no chuveiro na marra. Caso contrário, sei que passaria um ano, tranquilamente, sem ver a cor da água. Isso era fácil para mim.

Quanto mais tempo ficava longe do chuveiro, mais forte me tornava. De modo que após alguns meses sem me lavar, já me sentia um verdadeiro deus sobre a terra. Mesmo que todos me olhassem torto, eu não me importava. As crostas de sujeira se acumulavam em mim, eu adquiria uma nova tonalidade, mais sombria, as unhas ficavam pretas e o cabelo totalmente seboso. Era assim que eu gostava.

Na verdade, eu sequer fedia. Transcendera o fedor. Quando você deixa de tomar banho, só fede nos primeiros meses, depois os odores são absorvidos pelo organismo e sufocados embaixo das camadas de sujeira. Mas nos primeiros meses, sim, eu fedia pra valer. Lembro de certa vez no ônibus. Dois sujeitos sentavam no banco à minha frente.

– Que cheiro é esse? – um deles comentou.

– Cheiro?

– É, parece cocô.

– Dê uma olhada no seu sapato.

Sorri.

Na escola, professores e alunos me olhavam como se eu fosse uma espécie de múmia ou algo assim; o horror estampava-se nos seus rostos. Era magnífico. A sensação de estar completamente de fora do que eles entendiam e aceitavam como “realidade” era muito boa. Eu gostava de antagonizar com tudo aquilo e de ser uma espécie de “oposto” ao que eles gostavam e desejavam.

Como meus cabelos estavam extremamente sebosos, deixei de penteá-los. Seria inútil pentear. Meu aspecto já era grotesco mesmo. Eu parecia um daqueles pássaros que caem do ninho bem no meio da terra, e ficam lá, totalmente imundos e despenados, como se nada tivesse acontecido.

O engraçado é que ninguém tocava no assunto. Acho que tinham medo ou sei lá.

Para mim, aquilo não era falta de higiene nem monstruosidade, era simplesmente natural. E aí que está a beleza da coisa. Não estava me rebelando nem protestando contra coisa alguma. Simplesmente não gostava de tomar banho. O banho me enfraquecia e a falta dele me deixava a ponto de bala. Quando tomava banho, o que saía do boxe mais parecia um pedaço de borracha sem qualquer fiapo de alma... lambido e subjugado, como um gato atirado em uma bacia.

É engraçado. Hoje, um único dia sem tomar banho me deixa incomodado. O corpo incomoda, o cabelo incomoda, o cheiro incomoda. Mas naquela época, nada me abalava.

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