Letra Livre - 14 de fevereiro

Por Sérgio Bernardo
sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009
por Jornal A Voz da Serra

O que eles diriam, se não latissem

Desde aquele velho desenho animado A dama e o vagabundo – lá se vai tempo! – sei que o terror dos cães de rua nos Estados Unidos são as carrocinhas e seus apanhadores. Aliás, Hollywood fez questão de representá-los com bastante desumanidade, carantonhas que fazem medo até em marmanjo e as famigeradas redes para caçar os bichos. Em todos os filmes protagonizados pela espécie canina é assim. Isto é sinal de que eles mesmos, que instituíram um serviço de recolhimento dos cães de rua, devem achar esse ofício uma grande maldade e quem se dispõe a ele um tremendo mau-caráter. Em muitas histórias os cachorros são recolhidos para ser sacrificados. A missão dos mocinhos é tirá-los de trás das grades e criar um final feliz, com muitas lambidas no rosto e rabos saracoteando. Quem não se lembra da intenção de Cruella ao raptar cãezinhos em 101 Dálmatas? Fazer um exclusivo casaco de peles com as mesmas de todos os filhotes. Para tanto a megera se traveste de bem-intencionada e, no fim, claro, é desmascarada.

Ficção ianque à parte, o problema dos cães abandonados, também nas cidades brasileiras, é sério. Quem está por trás de um cachorro dito vadio quase sempre é um ser humano (humano?) que o deixa na rua ou ao nascer (nesse caso, invariavelmente, é toda uma ninhada), ou quando ele fica velho e doente, ou quando vai se mudar da cidade e não se dispõe a levar junto seu amigo (amizade apenas unilateral, ou seja, da parte do cachorro). O fato é que cães de rua não são vilões. São vítimas. Não são perigos à vista. São manchas de uma sociedade que decai vertiginosamente e não para sequer para sensibilizar-se com a questão dos homens que habitam as ruas, que dirá a dos animais. Com tantas mazelas, de que a fome é sempre o primeiro exemplo, uma ação para conduzir nossos cachorros a canis públicos, onde recebam tratamento humanizado, está muito longe de acontecer. O que não pode é voltar a ser como antigamente, quando havia carrocinhas e os cães de rua eram recolhidos para, sem transgenia, virar sabão.

Confesso que por vontade não enveredaria num assunto tão grave; por vontade eu falaria das coisas engraçadas que os cachorros aqui de casa vivem aprontando. Falaria de um e sua bola, em que dá patadas e na qual não deixa ninguém pôr as mãos sob a ameaça de um rosnado e um olhar severo – logo ele, com o olhar mais triste desse mundo por causa do peso das orelhas. Falaria do outro e sua chantagem emocional: quando quer a atenção da gente, encarapita-se no último degrau de uma escada e se põe a ganir até que alguém vá buscá-lo. Por vontade falaria destas gracinhas e outras mais, porém, não hoje. Hoje vejo que Cruella, a vilã, é uma caricatura, mas, como toda caricatura, uma distorção fiel da realidade: uma dog killer poderosa e muito próxima de nós, infelizmente.

Nota: Texto escrito em 27/11/2006 e republicado por indesejada necessidade.

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